As liberdades mais valorizadas por cada sociedade formam uma janela pela qual podemos enxergá-la com mais clareza. Muitos brasileiros acham a liberdade de expressão, que protege contra a censura, não tão sagrada quanto o direito à privacidade.
Foi por isso que muitos deles foram a favor da ação bem-sucedida que Roberto Carlos moveu em 2007 para ter um livro respeitoso sobre sua vida tirado das livrarias. Em artigo publicado pelo "Globo" em 2013, Chico Buarque, um dos muitos músicos que apoiou Roberto, defendeu o direito que uma figura pública tem de preservar sua vida pessoal.
Uma ação judicial desse tipo teria sido impensável nos Estados Unidos, onde há abundância de biografias não autorizadas, muitas das quais são difamatórias ou tomam amplas liberdades com os fatos.. E a decisão tomada em maio pelo Supremo Tribunal brasileiro, proibindo os objetos de biografias não autorizadas de barrar a publicação das mesmas, teria sido desnecessária nos EUA.
Por quê? A Constituição dos Estados Unidos protege a liberdade de expressão com mais força do que salvaguarda o direito à privacidade. Se essas biografias são difamatórias, a figura pública biografada pode processar os autores e as editoras.
A Constituição americana enxerga o direito do cidadão de expressar sua opinião como sendo fundamental em uma democracia. O livre fluxo de ideias, opiniões e reclamações constitui o oxigênio democrático. Tanto assim que, em 1978, os tribunais americanos se negaram a impedir que neonazistas, usando suásticas, fizessem uma marcha em um subúrbio judaico de Chicago.
A defesa americana da liberdade de expressão é tão antiga quanto o próprio país. Quando colonos americanos do século 18 protestaram contra a autoridade do governo britânico de lhes cobrar impostos, o Parlamento britânico os taxou ainda mais. A rebelião subsequente dos colonos foi a faísca que deu origem à Guerra de Independência dos Estados Unidos.
Talvez os brasileiros não enxerguem a liberdade de expressão como um direito tão fundamental porque ela não exerceu papel na independência do Brasil, decorrente de uma secessão, não de uma revolução. Talvez os brasileiros não valorizem essa liberdade tanto quanto os americanos porque eles não combateram e morreram por esse direito.
Mas os brasileiros vêm exercendo esse direito com frequência crescente. Eles o fizeram coletivamente nos protestos das "Diretas Já", em 1983-84, reivindicando eleições presidenciais diretas, e nas manifestações contra Collor em 1992. Em junho de 2013 os brasileiros voltaram às ruas em defesa da tarifa zero para o transporte coletivo. Em 2015 a elite brasileira promoveu panelaços contra o programa do governo.
Os americanos protestam publicamente não apenas para fazer oposição a políticas do governo, mas para defender grupos marginalizados dos quais fazem parte ou com quem se identificam. Em 2014 e 2015, negros (e brancos empáticos) fizeram protestos de rua contra a morte de adolescentes afro-americanos desarmados às mãos de policiais brancos em cidades diversas, de Ferguson, Missouri, a Baltimore, Maryland. Nunca vi um protesto desse tipo no Brasil, onde negros desarmados também são vítimas frequentes da violência policial.
Uma razão pela qual a defesa coletiva de grupos marginalizados é tão rara neste país é que negros, gays e feministas são muito menos organizados que nos Estados Unidos. Mas, mesmo que os brasileiros não exerçam sua liberdade de expressão tão amplamente quanto os americanos, os dois povos sentiriam profundamente a falta desse direito, se ele lhes fosse tirado. Como escreveu Cecília Meireles: "Liberdade, uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda".
MICHAEL KEPP, americano radicado há 32 anos no Brasil, é jornalista e autor do livro de crônicas "Tropeços nos Trópicos" (ed. Record).
Tradução de CLARA ALLAIN