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    Sociedade civil do Egito cria iniciativas para combater agressão sexual

    DIOGO BERCITO
    NO CAIRO

    28/02/2016 02h00

    Se alguém lhe chamasse de "docinho" na rua há alguns anos, Alia Soliman, 23, provavelmente não reagiria. Hoje, quando um homem encosta no seu corpo no metrô, ela grita. "Aprendi que, se eu mostrar que é errado, posso fazer ele parar", diz.

    Soliman é porta-voz de uma organização que combate o assédio sexual no Egito —um problema que, estatisticamente, afeta quase a totalidade das mulheres.

    Essa jovem ativista é, em um cenário mais amplo, parte de uma recente revolução no país, à parte daquela que derrubou o regime em 2011 : a formulação de estratégias para discutir e combater o assédio, crime desde 2014.

    Khaled Desouki - 29.dez.2014/AFP
    Egípcia Dina Wassef diz que olhares são único problema que enfrenta ao andar de moto no Cairo
    Egípcia Dina Wassef diz que olhares são único problema que enfrenta ao andar de moto no Cairo

    Há hoje organizações que tratam da prática com soluções variadas, como um mapa de ocorrências, trabalho de conscientização social e um serviço de táxi exclusivo. Voluntários uniformizados monitoram aglomerações.

    Segundo uma pesquisa da ONU, 99,3% das mulheres egípcias afirmaram já ter passado por situações como ter de trabalhar horas adicionais sem motivo, ser perseguida na rua, ouvir palavras obscenas ou ser estuprada.

    Organizações relatam um incremento no número de caso nos últimos anos, o que tem acelerado a criação de iniciativas como o Harassmap ("mapa do assédio"), em que Soliman trabalha.

    O projeto mapeia os casos de assédio por região no Cairo. É possível fazer denúncias anônimas. Nos últimos cinco anos, 1.500 casos foram registrados por essa via.

    Além do mapa, a organização vai às ruas ouvir homens e mulheres e discutir o crime, a partir da convicção de que o assédio sexual não resulta de cultura ou religião locais, e sim da aceitação social.

    "O assediador sabe que vai se livrar, e a mulher sabe que será culpada", diz Soliman.

    Assim, ela descarta argumentos recorrentes de que a mulher incentivou o estuprador por se vestir de tal maneira ou usar tal rua. A culpa, diz a ativista, é da sociedade.

    BRIGUEI, APANHEI

    Outra iniciativa é o Shoft Taharosh ("vi um assédio", em árabe). Fundado em 2012, o projeto trabalha com a conscientização.

    "Dá muito trabalho convencer as mulheres de que elas não merecem ser estupradas", diz à Folha a fundadora Hala Mostafa. "Se você se cala, é porque acha que mereceu. Ninguém merece."

    O Shoft Taharosh também vai às ruas durante feriados religiosos, quando são mais frequentes os casos de assédio. Uniformizados, seus voluntários vigiam aglomerações e relatam os crimes.

    Hala relaciona o surgimento da iniciativa e de projetos similares com as manifestações de 2011, que derrubaram o então ditador Hosni Mubarak. A situação política piorou desde então, mas a atitude diante do assédio fortaleceu-se durante o período.

    "Antes, eu não gostava do que via, mas achava que eu não podia fazer nada", afirma à reportagem. A experiência de ir às ruas em 2011 ("briguei, apanhei", conta) lhe convenceu do contrário.

    Para além da aceitação social, no entanto, Hala acredita que o assédio sexual está relacionado a um empurrão do atual governo. Há casos envolvendo a polícia, por exemplo, e a sensação entre organizações de que o assédio é uma ferramenta para perseguir ativistas no país.

    No mesmo cenário, surgiram iniciativas como o Pink Taxi, serviço exclusivo para mulheres —criticado justamente por excluí-las do espaço público, dando a entender que, ao usar um táxi regular, se sujeitam a ser assediadas.

    Houve também, recentemente, uma campanha de conscientização em estações do metrô, com painéis ilustrados com histórias em quadrinhos. O desenhista, Ahmad Nady, 34, conversou com mulheres na cidade para retratar um ponto de vista feminino sobre esse crime.

    "Nossa comunidade falhou ao não reagir ao assédio", diz ele à Folha. Ele desenhou, por exemplo, uma mulher abusada no ônibus sem ninguém se importar.

    Por se importar, voluntários do Shoft Taharosh foram agredidos em 2015, em um feriado religioso, ao tentarem proteger uma mulher. Um deles teve o lábio aberto. "O trabalho está difícil, mas não vamos nos calar", diz Hala.

    POR QUE VOCÊ NÃO RELATOU O ASSÉDIO? - Resposta de mulheres egípcias, em %

    POR QUE VOCÊ COMETEU ASSÉDIO? - Resposta de homens egípcios, em %

    SAIBA MAIS

    Apesar de algumas iniciativas, o Egito ainda é um lugar onde mulheres sofrem com o assédio sexual.

    No final de 2013, a Fundação Thomson Reuters, que faz pesquisas anuais sobre a situação das mulheres no mundo, divulgou uma que avaliava o respeito aos direitos das mulheres em países árabes.

    Quesitos como leis antiestupro e escolaridade feminina foram analisados em 22 países.

    Três nações onde a população saíra às ruas em protestos por mais liberdade, na Primavera Árabe, estavam entre as que mais desrespeitam as mulheres.

    O Iêmen aparecia em 18º lugar. A Síria, em 19º. O último posto foi do Egito.

    Mais de dois anos antes, em 11 de fevereiro de 2011, no dia da renúncia de Hosni Mubarak, causou repercussão mundial o estupro de Lara Logan, correspondente da rede de TV norte-americana CBS, que cobria a revolta no Egito.

    A jornalista, com 39 anos à época, foi agredida e estuprada na praça Tahrir, no centro do Cairo, quando a multidão celebrava a queda do ditador, no poder havia 30 anos.

    Em julho de 2013, a ONG Human Rights Watch mostrou que ao menos 91 mulheres foram estupradas em quatro dias durante protestos contra o governo muçulmano que substituiu Mubarak.

    Um general da polícia chegou a dizer à época que, "às vezes, uma moça contribui 100% para seu próprio estupro".

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