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    Guinada de Merkel à esquerda ajudou sigla populista de direita na Alemanha

    GUILHERME MAGALHÃES
    DE SÃO PAULO

    30/10/2016 02h00

    É simbólica na Alemanha a frase dita em 1986 pelo então governador do Estado da Baviera, o conservador Franz Josef Strauss: "À direita da União [cristãos-democratas e cristãos-sociais] não deve haver nenhum partido democraticamente legitimado".

    Desde o final da Segunda Guerra Mundial (1939-45), era incontestável a posição da CDU (União Cristã-Democrata) e de sua contraparte bávara (a CSU, União Cristã-Social) como líderes da direita democrática alemã.

    Nos últimos três anos, contudo, isso vem mudando, afirmam cientistas políticos alemães ouvidos pela Folha, que citam a AfD (Alternativa para a Alemanha) como o primeiro partido de sucesso à direita da União desde o fim da Segunda Guerra.

    Jörg Carstensen - 19.set.2016/AFP
    Cartazes da AfD (Alternativa para a Alemanha) em poste de Berlim antes de eleição para o Parlamento local
    Cartazes da AfD (Alternativa para a Alemanha) em Berlim antes de eleição para o Parlamento local

    O crescimento é atribuído principalmente à guinada que a chanceler Angela Merkel (CDU) deu para a esquerda em seu terceiro mandato, iniciado em 2014. "Esse movimento deixou uma lacuna na representação de orientação nacional conservadora", diz Gero Neugebauer, da Universidade Livre de Berlim.

    Criada no início de 2013, a AfD está representada em 10 dos 16 parlamentos estaduais alemães —considerando os resultados das eleições em Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental e Berlim, em setembro— e se prepara para a primeira eleição geral em que tem chances de conseguir cadeiras no Parlamento Federal, em setembro do próximo ano.

    Obter maioria, porém, é improvável —a sigla aparece em terceiro lugar, com no máximo 14% nas pesquisas nacionais.

    O abandono da defesa de temas caros ao eleitor conservador, como a energia nuclear e o serviço militar obrigatório, além, é claro, da política de portas abertas aos refugiados sustentada pelo governo Merkel, ajudou a afastar esse eleitor.

    Colaborou para isso a própria presença do SPD (Partido Social-Democrata) na coalizão de Merkel neste terceiro mandato. "As diferenças programáticas entre os grandes blocos deixaram de ser percebidas nessa 'grande coalizão'", avalia Simon Franzmann, da Universidade Heinrich Heine de Düsseldorf. "Com isso, a AfD pôde se apresentar como o partido inteiramente preocupado com as questões conservadoras."

    Franzmann acrescenta que o mau momento econômico da União Europeia "fez alguns eleitores deixarem de considerar válida a narrativa dos cristãos-democratas alemães de que a UE é necessária por ser um motor de crescimento para a economia".

    Contrária ao euro e à UE, a AfD está hoje nos parlamentos dos seis Estados que, até 1990, integravam a comunista Alemanha Oriental —em dois deles, com a segunda maior bancada.

    Os bons resultados no leste alemão decorrem, em grande parte, da retórica anti-imigração do partido. "Os receios quanto a estrangeiros e imigrantes são ainda muito fortes no leste, porque as pessoas tradicionalmente não tinham contato com outras culturas no tempo do regime comunista", afirma Tom Mannewitz, da Universidade Técnica de Chemnitz.

    Tobias Schwarz - 19.set.2016/AFP
    A líder da AfD, Frauke Petry, em entrevista após as eleições regionais de Berlim, em setembro
    A líder da AfD, Frauke Petry, em entrevista após as eleições regionais de Berlim, em setembro

    EXTREMA DIREITA

    Em três anos de existência, a AfD já se envolveu em polêmicas consideráveis. Para ficar só nas duas mais recentes, sua líder, Frauke Petry, disse que deveria se reabilitar o termo "völkisch", que caiu em desuso após ser usado pela ideologia nazista como sinônimo de "nacional", em oposição às raças que, segundo os nazistas, não eram alemãs. Para ela, o termo não deixaria de ser "um atributo à palavra 'volk' [povo]".

    Em outro episódio controverso, o deputado eleito em Berlim Kay Nerstheimer enfrenta um processo de expulsão da sigla. Logo após a eleição, no fim de setembro, a imprensa alemã divulgou postagens do Facebook dele, nas quais Nerstheimer glorificava os tempos nazistas e se referia aos refugiados como "vermes repugnantes".

    Ainda assim, de acordo com analistas, é mais correto classificar a AfD como um partido populista de direita, como a Frente Nacional francesa, e não um partido de extrema direita.

    "A AfD definitivamente não é um partido de extrema direita, porque isso significaria que ela lutaria contra a democracia, defenderia uma ideologia nazista ou fascista e falaria de uma não equivalência entre homens com base em raças ou culturas. Ela não faz isso", afirma Tom Mannewitz.

    Quem o faz é o NPD (Partido Nacional-Democrata), que responde na Suprema Corte alemã a um processo de inconstitucionalidade e pode ser proibido.

    "Novos partidos de direita como a AfD normalmente prestam muita atenção para que seus membros não expressem opiniões antissemitas e anticonstitucionais, além de tentarem se distanciar de partidos como o NPD", afirma Robert Ackermann, cientista político e jornalista que estuda o NPD.

    No curto prazo, o estabelecimento da AfD traz um fator positivo em um país onde o voto não é obrigatório. "Ela conseguiu atrair muitos eleitores que não votavam, e isso contribui para a estabilidade da democracia", afirma Mannewitz.

    Ele lembra, porém, que há um efeito negativo no longo prazo. "Ninguém quer governar com a AfD, o que torna a construção de coalizões de governo mais difícil."

    Editoria de arte/Folhapress
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