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    Em meio a perigos, equipes de resgate salvam refugiados no Mediterrâneo

    DA ASSOCIATED PRESS

    18/04/2017 17h00

    Como sempre, tudo começa com uma chamada de telefone via satélite das autoridades de resgate italianas em Roma. Elas estavam retransmitindo um pedido de socorro recebido de um barco de contrabando de migrantes que estava à deriva em algum lugar ao largo da costa da Líbia.

    A bordo do Golfo Azzurro, Guillermo Canardo fazia anotações.

    "Dois barcos", ele disse. "Cem pessoas a bordo de cada um."

    Ele parou, e depois fez uma pergunta sempre necessária: "Eles [os migrantes] ainda estão em movimento?"

    O Golfo Azzurro é um barco de pesca construída 30 anos atrás e convertido em navio de resgate, operado pela Proactiva Open Arms, uma uma organização sem fins lucrativos espanhola cuja missão é resgatar migrantes antes que eles sejam tragados pelo impiedoso Mediterrâneo.

    O barco opera na zona SAR –a zona de busca e resgate– que começa a 12 milhas náuticas (22 quilômetros) da costa da Líbia e se estende por outros 22 quilômetros nas imprevisíveis águas do Mediterrâneo.

    Essa é a última e mais perigosa seção da rota de migração conhecida como "rota líbia", que atravessa o continente africano. De acordo com o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), em média 14 pessoas morreram no Mediterrâneo a cada dia, em 2016, o número mais alto já registrado.

    Canardo, comandante das operações de resgate do Golfo Azzurro, estava em contato naquele dia com o Centro de Coordenação de Resgates Marítimos italiano, que lhe transmitiu as coordenadas das embarcações que estavam enfrentando problemas.

    Meia dúzia de tripulantes vestiram trajes de borracha e embarcaram sacos repletos de coletes salva-vidas em dois barcos de resgate de borracha laranja. Fernando Garfella, o comandante do primeiro bote de resgate, confirmou as coordenadas e saiu em alta velocidade na direção delas. Passados 15 minutos, um ponto escuro surgiu no horizonte.

    A maioria dos migrantes que atravessam o Mediterrâneo tentam chegar à Itália, hoje. Os números cresceram dramaticamente depois que a União Europeia e a Turquia assinaram um acordo no ano passado que permite que a Grécia encaminhe à Turquia novos solicitantes de asilo chegados ao seu território.

    Em troca, a União Europeia concordou em acelerar a concessão de vistos a cidadãos turcos e a doar 6 bilhões de euros (R$ 20 bilhões) para ajudar a custear as despesas das centenas de milhares de refugiados que vivem em território turco.

    No feriado de Páscoa, pelo menos 8.300 migrantes foram resgatados no mar, de acordo com Carlotta Sami, do Acnur, que segunda-feira postou no Twitter sobre os "três dias de trabalho incessante das equipes de resgate". Pelo menos oito corpos de vítimas de afogamento foram recuperados.

    Com o fechamento da rota via Grécia, o caminho de menor resistência passou a ser a Líbia - um país vasto e desordeiro, com uma imensa linha costeira e facções rebeldes e governistas em conflito. Migrantes de toda a África acorrem à Líbia, oferecendo uma excelente oportunidade de negócios aos contrabandistas de pessoas.

    O primeiro pedido de socorre vem por telefone via satélite, diretamente de uma embarcação de contrabando.

    Naquele dia de abril, as equipes de resgate localizaram duas embarcações superlotadas –66 pessoas em um bote de borracha e 86 pessoas em um barco de madeira, a 56 milhas náuticas (103 quilômetros) da costa da Líbia.

    Fede Gomez, argentino que faz parte da equipe de resgate, disse em inglês aos passageiros do bote inflável que mantivessem a calma, para evitar uma tragédia. Barcos emborcaram, em ocasiões anteriores –causando centenas de afogamentos–, quando migrantes desesperados saltaram precipitadamente ao mar na esperança de serem resgatados primeiro.

    O bote de borracha havia zarpado da Líbia 13 horas antes, navegando a noite inteira, e estava à deriva por conta de um defeito em seu pequeno motor de popa. Era uma embarcação completamente improvisada –um bote de borracha colado a uma base de madeira, formada por tábuas unidas por meio de grandes parafusos metálicos. Não restava água potável ou comida no bote, e ele não tinha combustível suficiente para chegar à Itália.

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    O grupo de migrantes teve a sorte de chegar a uma plataforma marítima de petróleo, orientado pelas chamas no topo da torre, e a equipe de resgate chegou ao barco perto da plataforma. Quando todo mundo foi transferido ao Golfo Azzurro, um dos membros da equipe de resgate destruiu os motores do barco dos contrabandistas –o segundo havia quebrado horas antes. Isso garante que "abutres"– o apelido dos pescadores locais que roubam motores dos barcos de contrabando –não possam revender os motores a novos contrabandistas.

    A raiva que a equipe de resgate sente dos contrabandistas é palpável, e costuma ser expressa em torrentes de palavrões impublicáveis.

    As horas passam, e mais migrantes são resgatados no mar. Por fim, há 230 deles a bordo, oriundos de Bangladesh, Paquistão, Níger, Mali, Eritreia, Guiné e Sudão, entre outros países.

    O Golfo Azzurro se encaminha a Trapani, na Sicília. A velocidade tem de ser reduzida. Os resgates foram realizados na tarda de quinta-feira (13) e os passageiros só poderiam ser desembarcados na manhã de sábado (17). Se a embarcação chegasse cedo demais ao porto, a equipe de resgate temia que os migrantes saltem na água e tentem chegar à Itália nadando.

    Cada resgate é uma nova história, em muitos casos repleta de sofrimento mas sempre com um tema comum –o sonho de uma vida melhor, uma fuga ao medo e à fome.

    Yakubu Yahia, 17, do Níger, foi à Líbia em busca de seus pais desaparecidos e foi sequestrado na cidade líbia de Sabha, quando estava atravessando o deserto do Saara. Seus sequestradores exigiram US$ 2.000 (R$ 6.200) –uma quantia inimaginável para ele–, e Yahia sofreu surras sucessivas até conseguir escapar. Por fim, conseguiu trabalhar na Líbia o suficiente para juntar US$ 400 (R$ 1.240) –o bastante para pagar um contrabandista que o conduziu à costa e ao barco.

    Nuy Hassen, 16, deixou a Eritreia aos seis anos de idade e passou uma década viajando pela Etiópia, Sudão e deserto do Saara. Ao longo do caminho, seus amigos foram mortos por contrabandistas porque adoeceram e não conseguiam acompanhar o ritmo do grupo. Quando por fim chegou à Líbia, Hassen foi sequestrado e passou sete meses cativo. Ele está tão traumatizado que ninguém consegue compreender completamente a sua história.

    Mohammed Abdullah, 32, da Guiné Equatorial, explicou que os contrabandistas exigem pagamento por meio de algumas das mais conhecidas empresas mundiais de transferência de fundos, em muitos casos via países do Golfo Pérsico. Ao longo do caminho, quase todo mundo que os migrantes encontram é corrupto –o que inclui uma lancha das forças armadas líbias que os escoltou por uma hora depois de partirem da praia em Zuwara.

    Ele diz que a Líbia é simplesmente terrível.

    "Se eu soubesse como são as coisas na Líbia, eu jamais teria ido", disse Abdullah. "Não sei como explicar a Líbia".

    Os migrantes ficam longe das ruas da Líbia, sempre que possível, por medo de sequestros. Se são capturados, os sequestradores muitas vezes penduram as vítimas pelos pés ou disparam armas perto de suas cabeças, enquanto suas famílias são contatadas pelo telefone. O objetivo é aterrorizar as famílias para que paguem resgate.

    Mas a bordo do Golfo Azzurro, surgem alguns bons momentos, por exemplo quando Ibo, 23, da Gâmbia, começa a cantar "One Love", de Bob Marley, o que leva outros dos resgatados a cantar, canções clássicas de Bangladesh e "Waka, Waka", de Shakira. Quando o sol se põe, uma baleia começa a acompanhar o barco, a estibordo.

    Na manhã de sábado, enfim o porto de Trapani. Depois de preencher formulários, passar por inspeções policiais e receber cuidados médicos, os 230 migrantes são autorizados a desembarcar na Europa.

    Eles agradecem a equipe de resgate, e trocam abraços de comemoração.

    A maioria deles, porém, não sabe que esse pode ser só mais um passo rumo a um sonho impossível. Muitos serão encaminhados a campos de imigrantes operados pelo governo. Outros, a depender de acordos internacionais, serão devolvidos aos seus países.

    E para muitos deles, uma questão assustadora se apresenta: será que voltarão a arriscar uma travessia do Mediterrâneo?

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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