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    'Síria será como o Iraque', diz refugiada no Líbano

    NAIEF HADDAD
    ENVIADO ESPECIAL AO VALE DO BEKAA (LÍBANO)

    21/08/2017 02h32

    No último dia 3 de agosto, a temperatura no Vale do Bekaa, na região central do Líbano, rondava os 35ºC.

    Dentro das barracas de lona do campo de refugiados próximo da pequena cidade de Baaloul, o calor do verão libanês é ainda mais intenso.

    Vestida com uma abaya, a túnica que cobre todo o corpo das muçulmanas, a síria Etidal Mohamad, 35, não parece se incomodar com clima.

    A temperatura alta e a aridez da região não estão entre as grandes preocupações dessa mãe de quatro filhos.

    Etidal contou à Folha que ela e a família viviam em Daraa, uma das cidades sírias mais castigadas pelos bombardeios das forças do ditador Bashar al-Assad.

    Naief Haddad/Folhapress
    A síria Shadia Gassem Amar, 50, e três de seus quatro filhos em campo de refugiados no Vale do Bekaa, no Líbano
    A síria Shadia Gassem Amar, 50, e três de seus quatro filhos em campo de refugiados no Vale do Bekaa, no Líbano

    No sul do país, Daraa é uma cidade-chave para a compreensão dos confrontos. Foi lá, em março de 2011, que adolescentes foram torturados pelos soldados de Assad após pintar mensagens de protesto no muro de uma escola. A partir daí, eclodiram os conflitos entre as forças do regime e os insurgentes.

    Um ano depois do início dos combates, Etidal e a família conseguiram uma carona para levá-los ao Bekaa, no Líbano. Àquela altura, uma tia dela e alguns de seus primos já tinham sido mortos em decorrência de bombardeios em Daraa. De acordo com o Observatório Sírio de Direitos Humanos, já morreram na guerra mais de 312 mil pessoas.

    NO CAMPO E NA ESCOLA

    Enquanto o caçula Ibrahim vê TV, Etidal conta que temia pela vida das suas crianças quando a guerra começou. Hoje, receia pelo futuro que os quatro filhos terão.

    A mais velha é Manar, 16, que já está noiva. É ela quem ajuda a mãe a cuidar dos irmãos –Khaled, 12, Omar, 10, e Ibrahim, 4– quando os garotos não estão na escola.

    Ibrahim frequenta uma sala de aula montada dentro do campo de refugiados. Já Manar, Khaled e Omar estudam junto com os libaneses em um colégio na cidade de Baaloul.

    Segundo a mãe, os três são cotidianamente insultados na escola. "Outro dia, um funcionário falou para os meninos: 'Vocês são sujos. O que estão fazendo neste país?'".

    Diferentemente do marido, que faz bicos, Etidal muito raramente deixa o campo. Muçulmana sunita, ela prefere rezar em sua barraca a ir à mesquita de Baaloul.

    Etidal não quis ser fotografada, mas deu permissão para um retrato dos dois filhos que estavam na barraca.

    Naief Haddad/Folhapress
    Os irmaos Omar, 10, e Ibrahim, 4, em campo de refugiados no Vale do Bekaa, no Libano
    Os irmaos Omar, 10, e Ibrahim, 4, em campo de refugiados no Vale do Bekaa, no Libano

    TÃO PERTO, TÃO LONGE

    Quando começou a guerra na Síria, em 2011, o Líbano tinha cerca de 4 milhões de habitantes. Desde então, recebeu mais de 1 milhão de moradores do país vizinho.

    Embora não seja o principal destino dos refugidos sírios, o Líbano ocupa a liderança quando se considera a proporção de sírios frente à população local. De cada cinco pessoas que vivem no país, pelo menos um é sírio.

    "Os sírios vêm para cá e aceitam receber por determinados trabalhos um terço do valor que costuma ser pago aos libaneses. Assim, roubam os empregos do povo daqui", queixa-se Fatima Smidi, 54, que mora em Al-Khiara, também no Vale do Bekaa.

    Fatima se mudou para o Brasil em 1987, onde viveu por 20 anos. Ela fugia da guerra civil no Líbano, que se estendeu de 1975 a 1990.

    Em fases diferentes ao longo desses 16 anos, o Líbano foi ocupado por Israel e Síria. Entre os libaneses mais velhos, são recorrentes os comentários que revelam impaciência com os sírios.
    vizinhas

    Shadia Gassem, 50, mora ao lado de Etidal no campo de refugiados, que reúne cerca de 350 pessoas.

    As vizinhas guardam diversos pontos em comum: são muçulmanas sunitas, mães de quatro filhos e têm a mesma origem, Daraa, na Síria.

    O cotidiano de Shadia, porém, é mais precário. Com os pés inchados, ela mal consegue andar e depende da ajuda de outros refugiados e de eventuais doações. Seu marido morreu há dez anos.

    Na família de Shadia, o único que trabalha é o filho mais velho, Amjad, 22. Ganha muito pouco como servente de pedreiro, e quase tudo é gasto com o filho bebê e com os remédios para a mãe. Embora saiba que amplas áreas da sua cidade na Síria estão em ruínas, Shadia aguarda o dia de retornar.

    Não é o que pensa Mariam Barakat, 37, também refugiada síria. Sem emprego e com um marido que ficou cego depois de um acidente de caminhão, ela não cogita rever sua cidade natal, Hama.

    Diferentemente de Etidal e Shadia, Mariam não vive em um campo de refugiados. Ela mora há seis anos em um bairro modesto de Beirute.

    Após recordar a morte dos membros da família de um tio durante a guerra, Mariam expressa, com ênfase, a razão de não querer botar os pés de novo no país em que nasceu.

    "A Síria será como o Iraque. Os movimentos terroristas vão se perpetuar."

    TERRORISTAS EXPULSOS

    Depois de passar pela cidade histórica de Baalbeck, no Vale do Bekaa, região central do Líbano, o jipe do Exército avança cerca de 20 km por uma estrada de terra que corta terrenos bastante áridos.

    Conhecida como Arsal, a área é dominada pelas Forças Armadas do Líbano. Não há moradores, e a entrada de jornalistas só é permitida com autorização militar.

    A estrada chega ao fim no alto de uma colina, onde fica um recém-construído posto militar. Ao menos 50 soldados vigiam o local, cercado por muros cuja espessura varia de um a dois metros.

    A explicação para tamanho aparato de segurança mora na geografia. O posto fica a menos de 500 metros da fronteira com a Síria.

    Com o apoio do Hizbullah, partido político e força armada xiita, o Exército libanês retomou esse trecho há apenas dois meses. O lugar foi dominado por quase quatro anos por duas facções terroristas, Hayat Tahrir Al-Sham (antes conhecida como Jabhat al-Nusra) e Estado Islâmico (EI).

    Pergunto ao sargento que acompanha a reportagem quantos morreram nos confrontos nessa área. "Informação sigilosa", diz ele, que não pode ser identificado tampouco fotografado.

    Segundo o sargento, ainda há cerca de 700 extremistas em outros pontos da fronteira entre Líbano e Síria.

    Neste último sábado (19), o Exército do país iniciou nova ofensiva a poucos quilômetros desse posto militar. O objetivo é expulsar integrantes do EI em outra área da fronteira, conhecida como Ras Baalbeck.

    Encerrada a visita ao local, demoramos pouco mais de 20 minutos para voltar a Baalbeck, onde escolas, restaurantes e lojas funcionam normalmente. Em um país de contrastes, a vida segue.

    Colaborou ZILDA NAVES

    O jornalista NAIEF HADDAD viajou a convite do blog Na Segunda a Lu Começa

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