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    500 anos de reforma protestante

    Reaproximação com católicos marca 500 anos da reforma na Alemanha

    JEAN-PHILIP STRUCK
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE WITTENBERG (ALEMANHA)

    31/10/2017 20h46

    Hendrik Scmidt/DPA/AFP
    Prefeitura de Wittenberg faz show de luzes para celebrar os 500 anos da reforma protestante
    Prefeitura de Wittenberg faz show de luzes para celebrar os 500 anos da reforma protestante

    A pequena cidade de Wittenberg, no leste da Alemanha, transformou-se nesta terça-feira (31) em uma "Meca" do protestantismo durante a celebração do aniversário de 500 anos da Reforma Protestante.

    Foi na porta da igreja de um castelo local, segunda a tradição luterana, que o então frade Martinho Lutero pregou, no dia 31 de outubro de 1517, suas 95 teses com críticas à Igreja Católica —ele foi excomungado quatro anos depois. O evento marca o início da divisão entre católicos e protestantes.

    Na Alemanha, Lutero não é apenas um líder religioso, mas uma figura de profunda influência cultural. Sua tradução da Bíblia colaborou para a padronização da língua alemã, e o estímulo da sua leitura ajudou a promover a educação no país.

    Em sua mensagem sobre a data, a chanceler Angela Merkel, ela mesmo filha de um pastor luterano, afirmou que, com suas teses, o reformador "desencadeou um processo que não podia mais ser interrompido".

    Hannibal Hanschke/AFP
    A chanceler alemã, Angela Merkel, participa de culto do jubileu da Reforma Protestante em Wittenberg
    A chanceler alemã, Angela Merkel, participa de culto do jubileu da Reforma Protestante em Wittenberg

    A celebração deste ano foi o primeiro jubileu protestante na Alemanha reunificada. Datas anteriores, como o quingentésimo aniversário nascimento de Lutero em 1983 ou os 400 anos da reforma em 1917, foram eclipsados por acontecimentos como a divisão do país e a Primeira Guerra Mundial, e as festividades ainda exibiam ressentimento com os católicos.

    Desta vez, a Igreja Evangélica na Alemanha (EKD), a federação que reúne mais de 20 igrejas protestantes alemãs, quis deixar para trás o aspecto divisionista do movimento iniciado por Lutero e focou no ecumenismo e na aproximação com os católicos.

    Durante a cerimônia na igreja, foram convidados líderes católicos, ortodoxos e da comunidade judaica. Membros do coral de meninos de Leipzig, que teve Johann Sebastian Bach como diretor no século 18, foram os responsáveis pela música.

    O bispo Heinrich Bedford-Strohm, presidente do Conselho da EKD, estendeu simbolicamente as mãos dos protestantes aos católicos. Num discurso direcionado ao papa Francisco, disse: "Quando você vier a Wittenberg, vamos recebê-lo de todo o coração".

    Junto com o cardeal Reinhard Marx, presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha, Bedford-Strohm entregou uma cruz ao presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, e disse que os cristãos devem promover a reconciliação e a paz.

    Ainda para marcar a data, foi criado um feriado nacional excepcional —normalmente, a data festiva só é feriado no leste da Alemanha, de maioria protestante.

    TURISMO

    Para Wittenberg, a data representou um impulso na economia.

    Por décadas atrás da Cortina de Ferro, a cidade começou a renascer como centro de turismo religioso nos anos 80, quando a liderança da antiga Alemanha Oriental resolveu reabilitar Lutero como uma espécie de pré-revolucionário comunista.

    Após a queda do muro, passou a atrair turistas estrangeiros. Nesta terça-feira, cerca de 35 mil visitantes apareceram —as autoridades locais esperam que 2 milhões visitem a cidade em 2017.

    Um grupo de 82 fiéis da Igreja Comunidade das Nações partiu de Brasília para participar da celebração. Viajando sozinho, o pastor Eliel Leonardo, da Assembleia de Deus Ministério Madureira, disse em frente à Igreja do Castelo que era "um privilégio" celebrar a data na Alemanha.

    O curitibano Claiton Werner Küster, 50, membro da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), chegou a Wittenberg como parte de uma viagem de seis semanas que inclui outros locais por onde Lutero passou, como Eisleben (cidade onde nasceu) e Worms.

    Em 2010, ele já havia caminhado da Alemanha até Roma, uma jornada de 1.500 quilômetros, assim como Lutero fez em 1511. "Eu saí de Berlim, enquanto Lutero partiu de Erfurt, então caminhei ainda mais", disse. "Considero Lutero um grande exemplo, um homem de profunda determinação."

    Praticamente toda a economia da Wittenberg gira em torno da exaltação do reformador. Lojas vendem "Cerveja Lutero" e todo tipo de quinquilharia associada ao reformador, como camisetas em que ele aparece estilizado como Che Guevara acima da mensagem "Viva la reformation!".

    Para os próximos anos, há planos para outras celebrações, como os 500 anos do casamento de Lutero com a ex-freira Katharina Von Bora, que será celebrado em 2025.

    BALANÇO

    Os eventos desta terça-feira marcaram o fim da "década de Lutero", uma série de celebrações que começou em 2008 e que foi intensificada no último ano. No balanço final, a EKD apontou como pontos altos as convenções da Igreja Evangélica (Kirchentag) que ocorreram em Berlim e Wittemberg neste ano.

    A primeira atraiu 120 mil participantes e chegou a contar com a participação do ex-presidente americano Barack Obama, um protestante não filiado a uma denominação específica.

    Outros eventos decepcionaram. Assembleias itinerantes em seis cidades da Alemanha enfrentaram dificuldades em atrair participantes.

    O Kirchentag de Leipzig atraiu só 15 mil pessoas —bem abaixo da meta de 50 mil. Uma exposição em Wittenberg sobre o protestantismo pelo mundo custou 25 milhões de euros e atraiu 294 mil pessoas de uma meta de meio milhão. "Queríamos mais visitantes. Essas foram algumas das decepções", disse a bispa Ilse Junkermann.

    Houve críticas na imprensa de que os eventos eram "intelectualizados demais" para o público alemão médio. Os custos estimados em mais de 250 milhões de euros para todas celebrações, pagos em parte pelo governo, também foram alvos de críticas.

    Editoria de Arte/Folhapress

    CATÓLICOS

    Líderes protestantes alemães apontaram o aprofundamento do diálogo com outras correntes cristãs, em especial o católica, como um das grandes conquistas do jubileu. O cardeal Reinhard Marx aproveitou o momento para pedir a reunificação das igrejas cristãs. "É o que defendo e pelo que rezo e trabalho há anos", disse em artigo.

    Mas a ideia ainda não parece interessar à liderança protestante, apesar de uma pesquisa ter mostrado que uma iniciativa nesse sentido agrada 47% dos evangélicos alemães.

    "Nós somos diferentes. Os protestantes ordenam mulheres, pastores podem casar, viver com famílias. Mas essa diferenças são também criativas. Uma igreja unificada seria tão chata quanto um partido único", disse Margot Kässmann, embaixadora do jubileu e que foi a primeira mulher a presidir o conselho da EKD.

    Hendrik Schmidt/DPA/AFP
    Alegoria de Martinho Lutero em Witterberg mostra acusações de antissemitismo contra líder protestante
    Alegoria de Martinho Lutero em Witterberg mostra acusações de antissemitismo contra líder protestante

    CONTROVÉRSIAS

    O interesse renovado pela cidade e pela figura de Lutero também voltou a levantar aspectos mais controversos, em especial a pregação antissemita do reformador.

    Em meio às celebrações desta terça em Wittenberg, um manifestante empunhava um cartaz contra a presença de um relevo ainda adorna a fachada da igreja de Santa Maria, que mostra um grupo de judeus caricatos em volta de uma porca.

    Há várias petições que pedem a retirada da obra, mas a prefeitura e a congregação local defendem a manutenção. "A história é sobre não esquecer o lado negro, mas sobre enfrentá-lo", disse o pastor da igreja, Johannes Block.

    As celebrações também ocorreram em um momento de declínio do cristianismo, em especial do protestantismo, na Alemanha. Antes da Primeira Guerra Mundial, 60% da população era filiado a igrejas evangélicas. Hoje, os protestantes não passam de 26,5%, ou 22 milhões de pessoas.

    O declínio se acentuou ainda mais nas últimas décadas, especialmente no leste, que sofreu a influência do comunismo. Números da EKD mostram que menos de um milhão de fiéis vão à missa regularmente. Até mesmo em Wittenberg, apenas 12% dos 46 mil habitantes continuam filiados a igrejas protestantes.

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