• Opinião

    Sunday, 19-May-2024 15:08:12 -03

    Renan Quinalha: Onde estão os desaparecidos políticos?

    31/03/2014 03h00

    A busca da verdade e da justiça em relação aos crimes cometidos pela ditadura remontam ao final da década de 1970, quando teve início a longa e truncada transição democrática no Brasil.

    No entanto, por décadas o movimento dos familiares de mortos e desaparecidos políticos foi colocado à margem da agenda da redemocratização. Os aliados de outrora no combate à ditadura privilegiaram outras pautas nas lutas travadas na Constituinte, deixando a questão da violação dos direitos humanos em posição secundária.

    As elites políticas que estiveram à frente da redemocratização, apesar da mobilização popular, acreditavam que o esclarecimento dos crimes e a responsabilização dos respectivos autores, naquele momento, poderiam significar uma afronta aos setores militares e civis envolvidos com a ditadura.

    Segundo essa visão, qualquer passo mais ousado poderia resultar no rompimento da transição negociada e concretizar a ameaça persistente de uma regressão autoritária.

    Assim, a pressão para que o Estado provesse respostas satisfatórias às demandas por verdade, memória e justiça não foi forte o suficiente na nascente democracia. Apesar das eleições e da estabilidade tão almejadas, a questão "onde estão os desaparecidos políticos?" permaneceu como uma desagradável lembrança dos bloqueios ainda não enfrentados pela democracia.

    As respostas dadas pelo Estado foram de maneira geral pontuais, limitadas e pouco articuladas entre si, o que comprometeu e ainda tem comprometido a efetividade dessas políticas.

    A primeira ação do Estado nesse sentido foi a edição da Lei 9.140, de 1995, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Promulgada dez anos depois da posse de um civil no posto maior da República, a lei teve por objetivo aliviar os prejuízos práticos e imediatos decorrentes da situação do desaparecimento forçado. Foram emitidos atestados de óbito sem que houvesse, contudo, a indicação do paradeiro dos desaparecidos ou que fosse revelada a verdade sobre as circunstâncias das mortes, geralmente decorrentes de torturas.

    Essa lei avançou por reconhecer a responsabilidade oficial do Estado em diversos casos de mortes e desaparecimentos, além de criar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, encarregada de analisar os demais casos que lhe fossem apresentados. Até hoje essa comissão já documentou um total oficial de 362 mortes e desaparecimentos no Brasil.

    A segunda resposta veio somente em 2002, com a criação da Comissão de Anistia, dando início a uma política de reparação pecuniária e, mais tarde, também simbólica, com as Caravanas da Anistia para os perseguidos políticos e seus familiares. A comissão já apreciou mais de 60 mil pedidos, revelando muitas histórias individuais, mas, por suas funções específicas, não deu conta de esclarecer o paradeiro dos desaparecidos políticos.

    O atual momento tem como marco a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Pela primeira vez uma lei consagrou o direito à verdade em nosso país, dando poderes para que a comissão possa convocar agentes públicos para prestar depoimentos, requisitar documentos e, o que é bastante importante, apontar os autores das violências cometidas, reconstituindo as cadeias de comando da máquina repressiva da ditadura.
    Depois da CNV, diversas Comissões da Verdade foram criadas em nível regional e mesmo setorial. Uma rede nacional foi formada para garantir que o direito à verdade seja finalmente efetivado.

    No entanto, passados quase dois anos desde o início das atividades, nota-se que os trabalhos das comissões estão, de algum modo, bloqueados.

    Orientados prioritariamente em recuperar a memória das vítimas e promover acolhimento dos sofrimentos, tarefas fundamentais e necessárias, elas ainda não têm conseguido avançar na apuração das violações e de seus autores mediatos e imediatos.

    O isolamento institucional e político das comissões no âmbito do governo brasileiro constitui hoje um dos maiores entraves a serem enfrentados. A CNV se vê incapaz de levar adiante os embates necessários com os setores herdeiros da ditadura, que ainda mantêm um poder residual importante no sistema político brasileiro.

    A verdade é que não houve, até o momento, a submissão do poder militar ao controle civil em nossa democracia. As Comissões da Verdade não podem ser cobradas para realizar sozinhas algo que em quase 30 anos os governos democráticos não puderam ou não quiseram levar a cabo.

    É preciso que haja, para o sucesso das Comissões da Verdade no Brasil no tempo que as resta, o pleno e integral acesso a todos os arquivos militares, que certamente não foram destruídos –como já foi alegado por alguns setores interessados em esconder a história.

    As Forças Armadas precisam contribuir efetivamente para levar adiante esse processo de apuração de responsabilidades, assumindo o que alguns de seus integrantes fizeram e pedindo perdão à nação. Diante de revelações de violências tão atrozes como as de Paulo Malhães, não se pode aceitar uma resposta protocolar como a que o Exército deu à imprensa, dizendo nada ter a declarar sobre esse assunto.

    Cabe ao governo, nesse momento decisivo, valer-se da legitimidade política da qual está investido para usar sua força de comando sobre as corporações militares a fim de garantir o restabelecimento da verdade e o respeito aos direitos humanos.

    RENAN HONÓRIO QUINALHA é advogado da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo e autor do livro "Justiça de transição: contornos do conceito"

    *

    PARTICIPAÇÃO

    Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@uol.com.br.

    Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024