A reação negativa de certos setores da sociedade ao decreto definindo a política de participação social do governo revela sua determinação de limitar a qualidade da democracia brasileira; de fazê-la perder o caráter razoavelmente participativo, que já tem, para ser apenas liberal.
Para a teoria política, existe um conceito mínimo de democracia: é o regime político que garante os direitos civis e o sufrágio universal. Esse conceito corresponde à forma de democracia que os liberais aceitaram nos países ricos no final do século 19, limitando a participação do povo à eleição de representantes sobre os quais ele teria pouco poder.
É evidente que o processo não poderia parar aí –que a qualidade da democracia não poderia restar mínima. A alternativa seria a democracia direta, mas o obstáculo maior para isso está na grande dimensão dos Estados-nação. Isso deve ter contribuído para que a definição de uma democracia que fosse realmente o "governo do povo" assumisse a forma viável de democracia representativa e participativa após a Segunda Guerra Mundial.
No Brasil, a democracia participativa foi inicialmente defendida por grupos católicos progressistas e seu maior entusiasta foi meu saudoso chefe no governo de São Paulo, André Franco Montoro. A ideia depois foi encampada pelo PT e se transformou em uma de suas maiores bandeiras, mas jamais exclusiva desse partido. Isso ficou claro na Constituição de 1988, com seus 12 incisos que abrem espaço para a democracia participativa.
Mas a participação popular não ficou apenas na letra da lei. Ela já é uma realidade viva e objeto de estudos. Uma das experiências, a do orçamento participativo, ganhou projeção mundial. Em uma instituição de alto nível como o Cebrap, existe um grupo voltado para o estudo das experiências de democracia participativa; prática que se repete nas grandes universidades brasileiras.
O decreto nº 8.243, portanto, não legisla sobre o nada. Pelo contrário, as formas de participação que define –as conferências nacionais, a ouvidoria pública, as audiências e consultas públicas– já existem no Brasil e muitas delas, especialmente as conferências nacionais, são dotadas de grande vitalidade e legitimidade.
Os liberais afirmam que o decreto implica o risco do surgimento de "um poder paralelo". Isso é puro nonsense. A democracia participativa convoca as organizações da sociedade civil e os cidadãos para participarem da definição das políticas públicas, mas de forma consultiva.
Há uma forma mais avançada, senão utópica, de democracia que é a "deliberativa", defendida por filósofos políticos como Jürgen Habermas e John Rawls. Mais avançada porque os conselhos populares teriam alguma autoridade para tomar decisões.
O decreto não é uma ameaça à democracia; pelo contrário, revela seu avanço relativo. O decreto não põe em discussão o caráter representativo da democracia, mas estabelece um mecanismo um pouco mais formalizado por meio do qual o governo poderá ouvir melhor as demandas e propostas da sociedade civil.
Alguns críticos afirmam que essa seria uma forma de "pressão" das organizações da sociedade civil sobre os parlamentares e as agências do governo, mas desde quando ouvir os cidadãos é ser vítima de pressão? Ao contrário, a democracia participativa é uma forma de se contrabalançar a pressão antidemocrática dos lobbies na defesa de pleitos que geralmente conflitam com o interesse público.
É comum ouvirmos que as democracias contemporâneas enfrentam uma crise. Essa tese é discutível, porque é da natureza da democracia refletir aspirações que não podem ser totalmente atendidas e conflitos para os quais não há solução fácil. Não tenho, entretanto, qualquer dúvida de que a democracia brasileira está forte e que o seu caráter participativo, ainda que limitado, é um de seus principais trunfos.
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, 79, é professor emérito de economia, teoria política e teoria social da Fundação Getúlio Vargas. Foi ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (governo FHC)
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