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    Marco Antonio Coutinho Jorge: Brasil versus Argentina

    25/06/2014 02h00

    Objeto de paixão universal, capaz de reunir multidões a cada fim de semana, o futebol é um dos fenômenos mais surpreendentes da cultura contemporânea.

    Do ponto de vista da psicanálise, a potência do futebol provém de sua capacidade de pôr em ação, de forma sublimada e portanto a favor da civilização, as forças pulsionais agressivas que, conjuntamente com as pulsões sexuais, constituem importante parte do acervo das pulsões que movem o desejo dos homens.

    Uma breve análise da nomenclatura futebolística revela que esse esporte é a expressão de profundas forças guerreiras que cada homem contém dentro de si. Esse belicismo é expresso tanto na terminologia básica da estrutura do jogo –capitão, tática, ataque e defesa–, quanto nas expressões idiomáticas –artilheiro, poder de fogo, chute de canhão etc.

    Nessa Copa brasileira de 2014, todos comentam as surpresas já na primeira fase: goleadas impressionantes da Holanda sobre a Espanha e da Alemanha sobre Portugal. O gol é o que dá sentido ao jogo, o que o torna o espetáculo vibrante que reúne jogadores e torcida.

    Muitos gols fazem com que o jogo produza aquilo a que está destinado: a sensação do poder da conquista. Afinal, o que é o gol senão a capacidade de atravessar o território do adversário até o reduto mais proibido, o único espaço do campo que é protegido por alguém que, tal como um guarda diante do cofre de um tesouro, tem a permissão de usar todos os meios para defender o time, inclusive as mãos? O que o cofre guarda é a imagem de potência –sofrer uma goleada corresponde a uma verdadeira humilhação.

    Um pergunta para finalizar: por que em toda parte ouve-se dos torcedores brasileiros uma única aspiração, a de que a final da Copa seja entre Brasil e Argentina?

    Em 1918, no artigo "O Tabu da Virgindade", Freud cunhou a expressão "narcisismo das pequenas diferenças" para designar a rejeição narcísica da mulher pelo homem por causa de seu complexo de castração. Posteriormente, Freud fez dessa noção um dos motores do racismo. Isso significa que são precisamente as pequenas diferenças entre indivíduos que formam a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles.

    Em 1930, no ensaio "O Mal-estar na Cultura", Freud volta ao tema para afirmar que são "as comunidades com territórios vizinhos e até com laços de parentesco as que se empenham em constantes rixas, ridicularizando-se umas às outras".

    Freud conclui que se trata de uma satisfação cômoda e relativamente inócua da pulsão agressiva, por meio da qual fica mais fácil a coesão entre os membros de uma comunidade. Pois um grande número de pessoas pode se unir pelos laços de amor desde que algumas fiquem de fora do grupo para receber a agressividade que precisa ser descarregada.

    Nenhum brasileiro torce para que a final seja entre o Brasil e a Holanda ou a Alemanha. A aspiração geral é a de que possamos vencer a Argentina e, desse modo, afirmar com veemência a nossa identidade diante de um país com o qual fazemos fronteira e cuja língua, cujos costumes e cujo futebol de craques são tão parecidos com os nossos.

    MARCO ANTONIO COUTINHO JORGE, psiquiatra e psicanalista, é professor e pesquisador na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

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