Waldir Troncoso Peres, o grande advogado criminalista, falando um dia sobre teses da defesa –aquelas razões que absolvem ou reduzem a pena– ofereceu esta frase lapidar: "A função do advogado de defesa é fazer os jurados esquecerem que existe um cadáver".
Em algo parecido acreditam, por motivos menos dignos, os que sustentam a inexistência do povo palestino, como fez nesta Folha Flavio Bierrenbach (Palestina, 6/7).
Não se trata aqui de responder àquele artigo que, francamente, contém pouco que mereça resposta e evidentemente foi escrito por quem não conhece o assunto –ninguém que inclua o Hizbullah entre os grupos da resistência armada palestina e o veja submetido em algum momento da história a Yasser Arafat pode se dizer conhecedor.
É a intenção por trás de advogar a tese que precisa ser exposta.
O artigo parece pedir um contexto –já que, significativamente, nem sequer são mencionados os últimos acontecimentos na faixa de Gaza e nos territórios ocupados. Talvez a explicação esteja em que, em 9 de julho, completaram-se os dez anos do parecer da Corte Internacional da Justiça, um dos principais órgãos da ONU, no qual 14 dos 15 juízes decidiram que a construção por Israel de um muro em territórios palestinos ocupados e, antes dele, a própria ocupação violam o princípio de não aquisição de territórios pela força, os direitos humanos dos palestinos, o direito humanitário –aplicável a conflitos armados– e, sobretudo, o direito de autodeterminação do povo palestino. O juiz americano, único a votar contra, não chegou a negar as violações, mas opôs-se a que a corte se manifestasse.
A efeméride talvez tenha urgido alguns a negarem a existência dos detentores dos direitos violados. Certamente, haveria mérito numa discussão acadêmica –como a que faz o historiador israelense Shlomo Sand em relação ao que chama de a invenção do povo judeu– sobre a medida em que os povos são de fato coisas inventadas que deitam suas raízes no mito.
Mas o exercício que fazem os negacionistas do povo palestino está longe de querer nos informar sobre o mundo das coisas humanas e sobre as ciências que o explicam.
O que se pretende é nos dizer que não existem os palestinos habitantes históricos da Palestina –"terra sem povo"–, que não existe o povo com direito à autodeterminação, que não existe o povo que habitava as aldeias sobre as quais sentam agora as cidades israelenses, que não existem os milhões de refugiados, os donos das casas destruídas, os donos das oliveiras derrubadas, que não existiram os pais dos órfãos nem existem os órfãos, que não existem as pessoas cercadas pelos muros e pelo arame farpado e, incidentalmente, que não existe quem esteja nestes dias sofrendo os bombardeios da aviação israelense.
O exercício nos diz que não há um cadáver, e é para que esqueçamos o crime. Por não poder, ainda, apagar a existência concreta das pessoas, o que se tenta fazer, ao negar a qualidade de "povo", é despir de significado essa existência –sutileza percebida por Hannah Arendt em "Eichmann em Jerusalém"– permitindo que contra esses seres humanos se possa tudo, da opressão à morte, passando pelo desterro.
Trata-se de um tipo especial de racismo, que não se basta com representar a sua vítima como torpe, vil, traiçoeira e naturalmente orientada para a violência, mas quer despi-la do direito de definir a sua identidade, negar-lhe o direito de ser, apagá-la da sua própria história.
SALEM H. NASSER, 46, é presidente do Instituto de Cultura Árabe e professor de direito da Fundação Getulio Vargas em São Paulo
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