• Opinião

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    Mônica Waldvogel

    Máxima culpa

    02/03/2016 02h00

    Anos atrás, passei por um desses linchamentos ferozes da internet em razão de um comentário improvisado durante programa da TV paga. Manifestei na ocasião minha dúvida a respeito de bicicletas serem alternativa viável de transporte em São Paulo. Ponderei as ladeiras, a insegurança e o clima.

    A reação foi violenta nas mídias sociais, nos blogs, nos comentários de site. Durante uns 40 dias me ameaçaram de estupro, espancamento e morte –sentença decretada a "carrocratas" insensíveis e ultrapassados. Exigiram a abjuração do meu erro, pedido de desculpas, retratação.

    Foi muito assustador, e também didático. Aprendi, primeiro, que os cicloativistas podem até conhecer a rota que nos levará a um mundo melhor, mas em geral não são lá muito cordiais. Depois, e mais importante, compreendi o risco que se corre ao invadir, desavisada, um tema que, a certa altura, já tem militância suficiente para interditar por variados meios a opinião discordante.

    Troche/Editoria de Arte/Folhapress
    Ilustração - Tendências e Debates 2 de março de 2016

    Um mea-culpa público teria sido irrelevante em face da maré cheia de opiniões educadas pela militância do ciclismo. A máxima culpa possível de ser admitida foi a de ignorar o modo como os ativismos operam em relação aos "de fora". Durante o período de ataque, no entanto, garanto que é muito sofrido distinguir o que é pessoal e o que é luta política dos outros.

    Não é possível saber se os virulentos comentários despejados sobre Fernanda Torres, entre o primeiro e o segundo artigos que escreveu a respeito do feminismo para o blog "#AgoraÉQueSãoElas", da Folha – e que provocaram tanto a ira como um pedido de desculpas–, foram sua estrada para Damasco.

    Fernanda pode ter experimentado uma epifania ao compreender a impertinência de seu "lugar de fala", esse da privilegiada "mulher branca de classe média". Só ela sabe se, de fato, sentiu sobre os ombros a responsabilidade por todas as ignomínias da história ou se ficou convencida de que contribuíra para as abominações causadas por racismo e machismo. Porque foi disso tudo que a acusaram.

    Pedir desculpas para ativistas é uma escolha entre a grandeza e a autocomiseração. Qualquer que seja o motivo, a intenção é estancar o mais rapidamente possível a enxurrada de insultos e recompor a autoimagem solidária às boas causas.

    O problema é que não há mea-culpa capaz de expiar o pecado de ignorar o cânone de conceitos e o índex de interditos das militâncias.

    O caso é que o pedido de desculpas de Fernanda Torres não foi aceito pelos setores mais duros do feminismo, a quem se dirigia. Fernanda continuou sendo a "mulher-branca-de-classe-média" acusada de blasfemar contra verdades cabais.

    Não deixa de ser conveniente que uma pessoa pública entre sem aviso nem malícia num debate como esse. Ativistas de qualquer causa estão sempre atentos e bem municiados.

    A barafunda de argumentos, ofensas e desqualificações com que atacam é tão avassaladora que a retratação do pecador é inócua. Tornar alguém um saco de pancadas pela maior duração possível é o modo de operar da luta política no século 21.

    Entretanto, não tem sido fácil para alguns grupos feministas firmar no mundo a ideia de que vivemos numa "cultura do estupro" –e talvez isso explique a agressividade com que sustentam o argumento.

    Relatem-se a dor e o sofrimento de quem passou por episódios de violência, e, ainda assim, não sabemos se seremos todos convencidos um dia de que há um estuprador em cada ser do sexo masculino. Ou um repugnante abusador. Ou, no mínimo, um assediador abjeto.

    As ideias têm de ser experimentadas como os vestidos. Nem todas servem, nem todas aderem ao corpo social, à época, ao que já é conhecido; há ideias e militâncias que não conseguirão se firmar.

    Sendo a liberdade de expressão a mãe de todas as causas, bom seria se as diferentes topografias da fala fossem levadas em consideração.

    Por enquanto, ativistas parecem lutar por um direito intangível e inacessível: o de não serem ofendidos pela opinião dos outros. Esse é um mundo impossível. Porque, como alguém disse no Twitter, "se organizar direitinho, todo mundo poderá se ofender".

    MÔNICA WALDVOGEL é jornalista e apresentadora do programa "Entre Aspas" (GloboNews)

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