• Opinião

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    ANGELA VIDAL GANDRA MARTINS

    Sexualidade humana em leilão

    02/11/2017 02h00

    Roger Lerina/Folhapress
    Obra de Bia Leite da mostra "Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira"
    Obra de Bia Leite na mostra Queermuseu, cancelada pelo Santander Cultural

    A recente polêmica sobre a exposição Queermuseu, promovida pelo Santander Cultural, levou a instituição a cancelá-la, pedindo "sinceras desculpas a todos que se sentiram ofendidos".

    O episódio me fez lembrar a posição da filósofa Hannah Arendt (1906-1975) no julgamento de Adolf Eichmann (1906-1962), no sentido de defender a racionalidade humana: somos capazes de fazer o mal, mas não é o pensamento que nos leva ao mal, não são as nossas qualidades mais humanas, mas, precisamente, não utilizá-las...

    O problema surge quando os princípios não existem, quando a renúncia a pensar os converteu em clichês vazios que desabam diante de qualquer pressão e não nos permite dar resposta pessoal e razoável a problemas que se apresentam.

    Aplicando analogicamente o raciocínio à forma com que tratamos a sexualidade, despersonalizando-a, como recentemente ocorrido no MAM, isso nos leva necessariamente a refletir sobre a importância que damos a ela, já que encerra em si nossa própria identidade e, em última análise, a felicidade mais profunda, que significa vivenciar pessoalmente a experiência do amor.

    Uma das questões mais preocupantes do século 21 é a miséria afetiva, sendo a banalização da sexualidade apenas uma manifestação de estarmos perdendo de vista a completude de sua riqueza.

    É empírico —a não ser que vivamos realmente como animais— que o sexo não é meramente biológico, mas atinge o núcleo da pessoa, indo muito além que um prazer pontual ao deixar, queiramos ou não, marcas indeléveis.

    Quanto mais nos afastamos da leitura antropológica capaz de evidenciar o misterioso papel do corpo como canal do amor, maior é o risco de transformá-lo em objeto científico, artístico, econômico, escravo, mas sempre algo, e não mais o corpo de alguém.

    Por outro lado, estimular um instinto intenso, descontextualizando-o de sua individualidade e relacionalidade, em vez de promovê-lo em sua magnitude, multiplica ações superficiais e autointeressadas, nas quais pessoas são meios e não fins, pela dissociação entre sexo e amor.

    Nesse sentido, no plano antropológico, analogicamente, as manifestações sexuais, são como uma ponta de iceberg, onde o que se externa corresponde a um "lastro ouro" armazenado em muito maior dimensão. A inflação de gestos —e consequentemente da linguagem, definindo qualquer relação interpessoal como "fazer amor"— esclerosa o significado mais pleno da sexualidade, comprometendo o fim da existência humana, vocacionada a amar e a ser amada.

    Tal como a inflação econômica é um engano que pode afundar uma nação, em muito maior escala, o deficit de amor real e a hipersexualização são uma mentira existencial ainda mais danosa: um câncer social que desestabiliza as relações familiares; prolifera a carência afetiva, a súplica de estima e a manipulação da afetividade; promove o desrespeito à corporeidade humana e leva a descartar injustamente os "efeitos indesejados".

    Voltando ao pensar harendtiano, podemos concluir que o repúdio a essa exposição ou a outras como a do Masp —para "maiores de idade"— é simplesmente humano, muito humano, renovando a esperança na capacidade humana de se reconhecer como tal.

    ANGELA VIDAL GANDRA MARTINS, doutora em filosofia do direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é sócia da Advocacia Gandra Martins

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