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    Tiro que matou Chico Mendes foi tão violento que estremeceu a casa; leia trecho

    da Folha Online

    15/12/2009 18h05

    Divulgação
    O livro reúne reportagens sobre o assassinato de Chico Mendes
    O livro reúne reportagens sobre o assassinato de Chico Mendes

    Há 65 anos, nascia Francisco Alves Mendes Filho, mais conhecido como "Chico Mendes". Criado na Floresta Amazônica e trabalhando desde os 9 anos como seringueiro, ele foi responsável pela mais eficaz militância ecológica já ocorrida no país, tornando-se símbolo mundial da luta pela preservação da Amazônia.

    Tentando evitar a devastação da floresta e também defender os defender os habitantes locais e trabalhadores, ele pregava a negociação pacífica com os pecuaristas e a criação das reservas extrativistas. Essas reservas seriam áreas protegidas para uso dos trabalhadores locais que vivem da exploração de recursos materiais renováveis, combinando a preservação ambiental e desenvolvimento econômico. Sua política, no entanto, despertou a ira de fazendeiros da região, o que resultou em seu assassinato, que aconteceu em 22 de dezembro de 1988.

    O livro "Chico Mendes: Crime e Castigo" (Companhia das Letras) reúne reportagens escritas por Zuenir Ventura sobre Chico Mendes. O livro é dividido em três partes. A primeira, "O Crime", reúne as reportagens feitas para o "Jornal do Brasil" no começo de 1989, logo após o assassinato do seringueiro. Na segunda, "O castigo", estão as reportagens produzidas em 1990, com Marcelo Auler, durante a segunda e a terceira viagens do repórter ao Acre para cobrir o julgamento dos assassinos. "15 anos depois" é a terceira parte, com textos de outubro de 2003, quando Zuenir revisitou lugares e personagens envolvidos no crime.

    Leia trecho do livro abaixo.

    *

    O tiro que foi ouvido no mundo todo

    No dia em que Chico Mendes ia morrer, 22 de dezembro de 1988, Ilzamar Mendes queria assistir à morte de Odete Roitman. Durante aqueles últimos oito meses, o Brasil parava às 8h30 da noite - 6h30 no Acre - para se revoltar com as maldades da megera sem escrúpulos e sem caráter que se transformara no símbolo de um país que terminava o ano com 900% de inflação, o naufrágio do Bateau Mouche e uma sensação de impunidade generalizada - um país do vale Tudo, como sugeria o título da novela da TV Globo de que a Odete era vilã.

    Se soubesse que a morte anunciada para aquela noite só iria ocorrer na verdade dois dias depois, quase na hora da ceia de natal, Ilzamar não se apressaria tanto em interromper o jogo de dominó entre o marido Chico Mendes e os seus seguranças, o cabo Roldão e o soldado Lucas. Os três, sentados nos banquinhos da mesa retangular da cozinha, coberta de fórmica, jogavam desde as cinco da tarde, assistidos por D. Maria Rocha, amiga do casal Mendes.

    Ilzamar aproximou-se da mesa e disse: "vocês me desculpem, mas vou servir o jantar agora, já são seis e meia e ta na hora da novela e hoje ninguém me faz perder esse capítulo". Eles sabiam que aquele capítulo, o 191, ela e outros 60 milhões de brasileiros não queriam perder. Chico ainda pediu "um minutinho" - que foi o tempo para o cabo Roldão ganhar aquela rodada. Em seguida, desfez o jogo, mandou que os companheiros fossem comendo - feijão, arroz e peixe - e chamou Ilzamar ao quarto: "vou tomar banho e quero a toalha nova, aquela que ganhei no aniversário". Ela achou esquisito, com tanta toalha usada e ele pedir logo a nova, a que tinha ganhado no dia 15. Justo ele que não ligava para essas coisas" "Eu, heim", pensou Ilzamar, mas a pressa na hora era maior que a curiosidade. Que ele estreasse o presente, contanto que a deixasse livre para a novela.

    Com a toalha sobre o ombro direito como tinha mania de fazer, Chico partiu em direção ao banheiro, do lado de fora da casa, a uns três metros da porta da cozinha que se desce quase aos saltos, através de três degraus desiguais, toscos, numa altura de oitenta centímetros. Não resistindo aos apelos de Sandino, de dois anos, que correndo atrás pedia para ir também. Chico pegou o menino no colo, foi até a porta, que se abria de dentro para fora, da esquerda para a direita, puxou o ferrolho, entreabriu-a rapidamente, assustou-se com a escuridão e voltou para pegar a lanterna.

    Do lado de fora, atrás do coqueiro, a uma distância de 8,2 metros da entrada da cozinha, Darci Alves Pereira não chegou a perceber o rápido abrir e fechar da porta. Não estava ali há muito tempo, uns quinze minutos, vinte minutos. Sem relógio, ele só pôde calcular o tempo quando fez a reconstituição do crime porque se lembrou de que, ao entrar para a tocaia, ouviu o sino da igreja tocar. Haveria uma missa de formatura de oitava série às 19:30h e, nesses casos, como informou o seminarista Miguel da Rocha Rodrigues no seu depoimento no dia 1º de janeiro de 1989, era costume o sino dar uma primeira chamada às 18h30. A segunda era às 19h e a última às 19h15. Com essas informações os peritos calcularam a hora do crime: 18h45.

    Enquanto Darci espreitava na tocaia, Chico voltava, com Sandino no colo, para apanhar a lanterna, dizendo: "Amanhã boto uma luz nesse quintal". Foi quando Ilzamar se lembrou da gripe do filho.

    - Num pode levar, não, o menino ta gripado, Chico!
    - Ah, deixa ir, o bichinho ta querendo.

    Mas Ilzamar não abriu mão: "Além do mais, ele tem que jantar". Arrancou o menino do braço direito do pai - o braço que daí a pouco seria perfurado por dezoito grãos de chumbo - e foi dar-lhe de comer na sala em frente à televisão. Já estava sentada, quando ouviu a explosão.

    "Foi um estouro, um tiro tão violento que estremeceu a casa", não se esquecerá nunca Ilzamar. Ouviu a "zoada", mas não sabia de onde vinha. Chegou a ficar zonza. Correu então à janela, mas não viu ninguém: a rua vazia, a delegacia quase em frente, a sessenta passos, incompreensivelmente quieta. Os dois policiais sentados em cadeiras na calçada, impassíveis, davam a suspeita impressão de que só eles não tinham ouvido o tiro.

    Nesse momento Ilzamar teve um pressentimento: "O Chico ta no banheiro e atiraram nele".
    Uma fração de segundo foi suficiente para que do pressentimento ela passasse à certeza de que aquele estouro, fosse o que fosse, tinha como alvo o marido. Saiu correndo com Sandino no colo, pelo corredor que leva á cozinha, e nessa corrida ainda sofreu o esbarrão do soldado Lucas, que gritava: "Atiraram no Chico!".

    Estranhamente, ele corria na direção contrária, rumo á rua - não em direção ao homem cuja vida tinha por tarefa proteger nem em direção ao quintal de onde o pistoleiro tinha atirado. Por ordem do cabo Roldão, o soldado ia ao quartel da PM pegar uma metralhadora. Os dois estavam armados de revólver, mas, soube-se depois, com pouca munição.

    Ao chegar à porta do quarto, Ilzamar viu o marido cambaleando, tentando se agarrar em alguma coisa, caindo. O sangue que cobria seu peito não deixava dúvida quanto à extensão do ferimento. Além das dezoito perfurações no braço, ele fora atingido no peito direito por 42 grãos de chumbo. "Me acertaram", gemeu.

    "Ele vinha com as mãos na cabeça, todo vermelho de sangue", relembra Ilzamar. "Quando eu quis pegar no seu braço ele caiu e ficou se debatendo. Aí vi que estava morrendo. "A filha, então com quatro anos, mas só conseguia gritar: "Mamãe, socorre o papai, ele ta sujo de sangue!".

    Ilzamar abarcou-se com o marido, puxou-o para dentro do quarto e saiu gritando por socorro. Ela temia que, em vez de correr pelo mato, como fizeram, o pistoleiro ou pistoleiros subissem a escada da cozinha para acabar de liquidar com o marido e toda a família, ela e os dois filhos.

    "Ele queria dizer alguma coisa, mas não conseguia", recorda quase dois anos depois Elenira, que ficou agarrada ao pai, esperando em vão que ele dissesse o que queria. "Ele olhava para mim, mexia com a boca, mas não saia nada."

    (...)

    O primeiro vizinho a chegar foi o vereador do PT Júlio Nicasso, que morava três casas adiante, no mesmo lado da rua. Ele estivera com o amigo até pouco antes e fora jantar correndo para ir dar sua aula no segundo grau e em seguida voltar para continuarem o jogo. Chico ainda estava se debatendo quando Nicasso o colocou sobre a sua perna. "Ele ficou ali até que morreu", contou ao delegado Melo Neto, no dia 1º de janeiro de 1989.

    Na véspera do crime, Chico dissera a Nicasso que tinha chegado à conclusão de que dificilmente chegaria até o dia 30. "Ele foi categórico em dizer isso; ele disse isso para mim e para a irmã dele", contou.

    Impressionado por essa confidência, Nicasso voou de sua casa já sabendo:"Quando ouvi o tiro, para mim não tinha mais dúvida nenhuma".

    Chico Mendes acertou quando anunciou que ia ser morto, mas errou ao achar que sua morte poderia ser inútil. Aquele estouro que Ilzamar ouviu, no começo da noite de 22 de dezembro de 1988, chegou ao mundo todo. Nunca um tiro dado no Brasil ecoou tão longe - até hoje.

    "Chico Mendes: Crime e Castigo"
    Autor: Zuenir Ventura
    Editora: Companhia das Letras
    Páginas: 248
    Quanto: R$ 46,00
    Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

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