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    Ombudsman por um dia: A objetividade possível

    HÉLIO SCHWARTSMAN

    25/09/2014 02h00

    Em tempos eleitorais, uma queixa recorrente dos leitores é a falta de equilíbrio do jornal. Para os petistas, a Folha faz campanha contra o partido, já para os oposicionistas o jornal levanta picuinhas contra Aécio e Marina. Será possível ser objetivo numa cobertura jornalística? A questão não é trivial e já ocupou grandes filósofos e cientistas.

    É Immanuel Kant (1724-1804) quem traça as linhas do debate moderno. Para o filósofo de Königsberg, podemos conceber uma realidade objetiva, isto é, que exista independentemente das ideias que tenhamos sobre as coisas que a compõem.

    O problema é que essas "coisas em si" são uma mercadoria de pouco valor, já que nós, humanos, não temos acesso direto a elas, estando condenados a abordar o mundo através de nossa sensibilidade e por meio de nosso entendimento. Para Kant, o que de melhor temos à nossa disposição é o fenômeno, que seria uma espécie de interação entre a realidade objetiva e nossa forma humana, subjetiva, de percebê-la.

    Assim, num plano mais metafísico, a resposta à nossa pergunta é negativa. A objetividade não seria muito mais do que uma miragem.

    E é possível que Kant tenha sido um otimista. Ele, afinal, acreditava que a lógica presidia nossas operações mentais. Nas últimas décadas, porém, o cerco à objetividade se apertou. Desde que os psicólogos Daniel Kahneman e Amos Tversky mostraram nos anos 70 que, na hora de fazer escolhas, o cérebro recorre a truques que não são exatamente lógicos, cientistas já identificaram quase 200 vieses cognitivos –desde a tendência de só lembrar das evidências que corroboram nossas expectativas até os erros que permitem a formação de memórias falsas.

    O psicólogo Dan Kahan mostrou que nossos pendores ideológicos afetam até a capacidade de fazer cálculos. Um problema matemático exposto sem apelo ideológico foi resolvido sem dificuldade pelos voluntários com maior competência numérica. Mas, quando o mesmíssimo problema foi apresentado com colorações políticas (a eficiência do controle de armas no combate ao crime), o grupo de maior habilidade errou muito mais –e os erros obedeciam às suas preferências pessoais.

    É aqui que os alicerces do jornalismo começam a tremer. Se até a intelecção de um objeto simples é mediada pela subjetividade, é possível contar uma história como ela de fato aconteceu? A apuração e divulgação de notícias envolve encadeamentos lógicos e interpretações às vezes bastante complexos. Toda narrativa está repleta de escolhas, suposições e intenções que muitas vezes não estão claras nem para seu autor.

    Gosto de brincar dizendo que o jornalismo é a realização diária de uma impossibilidade teórica. Reluto, porém, em abraçar com muito entusiasmo essa tese, já que ela nos condenaria a um relativismo forte. E, se é verdade que, em pequenas doses, o relativismo é um remédio contra o dogmatismo, em excesso ele destrói a possibilidade de estabelecer prioridades e hierarquizar valores. Em seu grau máximo, apagam-se as distinções entre a astrologia e a astronomia, entre o curandeiro da floresta e o médico, entre o horário eleitoral e a boa reportagem.

    Ainda que não seja fácil sustentá-lo filosoficamente, penso que há uma diferença importante entre a ficção pura e simples e a exposição de eventos em princípio verificáveis. É nesse espaço estreito e epistemologicamente precário que o jornalismo busca equilibrar-se. Consegue?

    Eu diria que em alguns dias mais do que em outros. Embora eu esteja convencido de que, como princípio, a Folha busque apresentar relatos tão honestos quanto possível, ela ainda erra muito no varejo. Há desde reportagens com equívocos factuais até textos supostamente noticiosos em que o autor trai suas preferências pessoais. Frequentemente os leitores que apontam problemas numa matéria têm razão de queixar-se, ainda que não na proporção em que gostariam. É que leitores, assim como jornalistas, não têm como escapar das armadilhas da subjetividade.

    CONVIDADO DO DIA: Hélio Schwartsman, bacharel em filosofia, é titular da coluna São Paulo da pág. A2. Na Folha, já ocupou os cargos de editor de "Mundo" e de "Opinião". Publicou "Aquilae Titicans" em 2001

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