Mais alentado documento oficial sobre as violações aos direitos humanos cometidas na ditadura militar (1964-1985), o relatório final da Comissão Nacional da Verdade deixou de responder a uma das perguntas centrais sobre o período: quais e quantas pessoas foram torturadas —e por quem.
A lei que criou a comissão determinou como objetivo do grupo "promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior". Não é estabelecido outro foco ou limite.
O relatório divulgado na quarta (10), no entanto, prioriza três violações: mortes, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres —crimes que muitas vezes ocorreram concomitantemente.
A comissão ampliou o número oficial de mortos e desaparecidos para 434. Sobre esses casos, traz relatos detalhados, aponta quais documentos permitiram chegar às conclusões relativas às violações sofridas e lista quais agentes devem ser considerados responsáveis por elas.
Já o capítulo sobre torturas descreve genericamente como elas ocorreram, lista os tipos de sevícias que eram executadas e quais motivos embasam o entendimento de que essa prática se tornou, na ditadura, institucionalizada. O texto é permeado por excertos de relatos em primeira pessoa sobre as violações.
Em nenhum momento a comissão estabelece um número de pessoas que foram torturadas, tampouco lista quem foram essas pessoas ou os seus algozes. Prefere usar estimativas discrepantes.
Uma, do projeto "Brasil: Nunca Mais", que ainda durante a ditadura sistematizou violações aos direitos humanos, fala em cerca de 1.800 casos de tortura.
A outra, de 20.000 casos, foi usada pelo Plano Nacional de Direitos Humanos 3, iniciativa do governo Lula que iniciou o processo de criação da comissão.
O relatório afirma que qualquer aproximação é pouco confiável, dada que a dor ou natureza da tortura inibe a denúncia das vítimas.
Caso a comissão tivesse feito com as torturas o mesmo que fez com as mortes e desaparecimentos, o número de vítimas e de responsáveis do relatório seria exponencialmente maior. Como está, o relatório descreve algumas situações, mas se cala sobre a imensa maioria delas.
Para Pedro Dallari, coordenador da comissão, esse trabalho seria "impraticável".
"[Falta] Escala. Você viu os 434 casos [de mortos e desaparecidos], o tamanho que são os volumes [do relatório]. Imagina investigar 20 mil. Seria impraticável."
Segundo Dallari, tal investigação "seria um desperdício de tempo e de energia, não conseguiríamos fazer".
"Nós conseguimos muito mais: determinar com clareza os padrões do funcionamento da práticas das torturas no Brasil. A instrução dos torturadores, os métodos aplicados, os locais. Então acho que do ponto de vista de uma Comissão Nacional da Verdade, que não é uma instituição judicial, o que ela fez para revelar a verdade foi muito mais significativo."
COMISSÃO DE ANISTIA
A Folha questionou Dallari sobre a possibilidade de recorrer aos arquivos da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça. O órgão, que determina quem pode ser anistiado e indenizado pelo governo por danos sofridos durante a ditadura, reúne milhares de processos, já instruídos, com relatos de torturas cometidas por agentes públicos.
"Na Comissão da Anistia o foco foi outro, o tipo de investigação foi outro, ela teve outra flexibilidade, entrou em outros tipos de caso", argumentou o coordenador. "Eu vejo nas suas perguntas implícita a ideia de um tipo de rigor acadêmico que obviamente não se aplica à comissão."
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