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    folha, 95 anos

    ANÁLISE

    Falta de segurança e verba dificultam trabalho de repórteres de guerra

    DIOGO BERCITO
    NO CAIRO

    26/02/2016 02h00

    Que esteja claro desde o princípio: as vítimas do conflito sírio são os sírios.

    Mas a escalada na violência, durante os últimos cinco anos, significa também uma ameaça real à vida dos jornalistas estrangeiros que cobrem conflitos internacionais. O que, por sua vez, impede esse importante trabalho, polvilhando o território da Síria com uma nuvem de poeira que borra os fatos.

    O repórter free-lancer irlandês James Harkin, que colabora com veículos como o "Guardian", definiu com precisão a natureza do problema durante debate no Encontro Folha de Jornalismo.

    A palestra "Não Atire, Sou Jornalista", da qual participaram Harkin e a jornalista espanhola Mayte Carrasco, teve mediação da repórter especial e colunista da Folha Patrícia Campos Mello. Também participou o repórter especial João Wainer.

    A Síria, disse Harkin, tornou-se um buraco negro informativo —no sentido de que, se as informações não conseguem sair, um observador externo não pode visualizar a sua dimensão.

    A desinformação, nesse caso, favorece tanto o regime do ditador sírio Bashar al-Assad quanto organizações terroristas como o Estado Islâmico.

    Mas Harkin sugeriu ainda, durante a sua fala, que a profissão dos repórteres especializados em conflito sofre também pela crise econômica. Jornais não têm mais a verba necessária para investir nessa cobertura, que inclui gastos com viagens e equipamento de segurança.

    Se grupos de mídia não enviam seus repórteres bem preparados, passam a contar com o trabalho de colaboradores, remunerados de acordo com sua produção, e com menor —ou nenhum— apoio logístico nessa árdua tarefa.

    Ao lado da ausência de repórteres internacionais, a insegurança também faz com que atores locais passem a ter um papel fundamental no processo jornalístico. Parte das informações que circulam nos grandes veículos, como o "New York Times", vêm de ativistas no terreno.

    Harkin, a julgar por sua participação no debate, tem suas dúvidas quanto à participação das mídias sociais e dessas organizações na cobertura de conflitos. Fica difícil distinguir a informação da propaganda em campo.

    Mas essa postura também parece, de alguma maneira, legitimar apenas o observador externo. O irlandês se refere, em dado momento, a "nós, no Ocidente". Apesar de jovens jornalistas viverem no próprio cenário da guerra, acabam ofuscados pelos enviados internacionais de veículos de peso e renome.

    Além de insegurança e dificuldades causadas pela crise no jornalismo, o trabalho do correspondente em situação de conflito é prejudicado, ainda, por limitações de perspectiva e pela imposição de narrativas.

    Nem Harkin nem a espanhola Mayte Carrasco falam árabe.

    Ele diz que entende um pouco. Cita sua "intuição" e conta como anedota um momento em que "entendeu" o que era dito mesmo sem conhecer o idioma.

    Esse é um muro mais alto do que pode por vezes parecer. É uma barreira em geral contornada contratando tradutores ou "fixers" —produtores locais que, além de funcionarem como intérpretes, ajudam os repórteres a agendar entrevistas e deslocar-se no país desconhecido.

    Nada garante que a tradução seja fiel, ou que o "fixer" não direcione a apuração de acordo com sua própria convicção política.

    Ademais, quanto não se perde quando é impossível captar as conversas ao redor, durante um café numa cidade qualquer do Oriente Médio?

    Quando a situação é resolvida agendando entrevistas em inglês, e economizando assim na tradução, o repórter por vezes acidentalmente enfoca seu trabalho apenas em um segmento da população: a elite que conhece outras línguas. No caso egípcio, por exemplo, se perde no processo a importante distinção entre a perspectiva de um camponês e a de um universitário.

    A visão externa, reproduzida em veículos internacionais, é além disso contaminada pela dificuldade de traduzir contextos políticos distintos. No caso do Oriente Médio, palco tradicional da cobertura de conflitos, um repórter tem de combater frequentemente os preconceitos e as idealizações herdadas.

    Os exemplos óbvios são a ideia de que o islã é a causa do terrorismo, ou de que o conflito entre sunitas e xiitas é religioso, em vez de político. Mas a perspectiva em jornais mundo afora também cede a ideias recorrentes, como aquelas criticadas pelo intelectual palestino Edward Said em seu livro "Orientalismo" (1978).

    Países distintos como Marrocos e Iêmen, ou Sudão e Líbano, são tratados em bloco. A Primavera Árabe, por exemplo, ou fracassou ou teve êxito. Não importam as distinções de cada cenário, nessa visão homogênea.

    O "mundo árabe" ou o "mundo islâmico" são vistos como regiões estanques, problemáticas, propensas à crise. O próprio Harkin descreve a guerra na Síria como "confusa", um adjetivo comum a esses países —como se a economia mundial também não fosse, ou a situação da periferia em São Paulo, ou as ondas gravitacionais.

    Aprender a língua e a história locais são grandes esforços, e em parte dos casos inviáveis. Tampouco é possível se preparar para todo e qualquer cenário. Há conflitos em todo o planeta. Nesse caso, o investimento fundamental, nem sempre feito, é em cursos de sobrevivência e de primeiros socorros.

    A tarefa do repórter especializado na cobertura de conflitos é desamarrar-se de seus preconceitos e, na medida do possível, preparar-se para compreender o cenário que deve descrever —e que, de início, lhe parece confuso.

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