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    Falar que índio de iPhone não é índio é bobagem, diz herdeiro dos Villas Bôas

    JOELMIR TAVARES
    DE SÃO PAULO

    13/09/2017 02h00

    O advogado Noel Villas Bôas, 42, filho de um dos principais sertanistas e indigenistas do país, comprova nas paredes de sua casa a afirmação de que, desde a infância, não passa nem um dia sem ver algo que remeta a índios.

    Entre peças de cerâmica, máscaras, fotos e quadros espalhados pelo imóvel, no Alto da Lapa (zona oeste), ele diz que a população indígena no Brasil atravessa um dos momentos de maior ameaça a seus direitos em décadas.

    Grande parte dos objetos pelos cômodos pertenceu a seu pai, Orlando Villas Bôas (1914-2002), que com os irmãos Claudio (1916-1998) e Leonardo (1918-1961) formou o trio considerado referência na defesa dessas populações.

    Os irmãos Villas Bôas lideraram expedições para a Amazônia a partir dos anos 1940 e foram fundamentais na criação do parque indígena do Xingu, em 1961 —história contada pelo cineasta Cao Hamburger no filme "Xingu" (2011), com os atores Felipe Camargo, João Miguel e Caio Blat nos papéis principais.

    "Herdeiro do legado dos irmãs de fato eu sou. Só não sei se tenho estatura para tanto", diz Noel. "É um legado que, acima de tudo, defendo", segue, mostrando uma pulseira trazida do Xingu. Ele acaba de voltar da região, onde participou de um quarup (cerimônia religiosa das tribos em homenagem aos mortos).

    O advogado busca apoio para criar um instituto com o acervo do pai. Ex-filiado ao PSDB, Noel chegou a ser cotado no ano passado para assumir a presidência da Funai, com o apoio de lideranças como o cacique Raoni, que era amigo de Orlando. O cargo acabou sendo ocupado por um militar indicado pelo PSC.

    *

    Folha - Como seu pai e seus tios reagiriam a medidas como a proposta de transferir para o Congresso a decisão sobre demarcação de terras e a recente extinção da Renca, reserva mineral na Amazônia?

    Noel Villas Bôas - Eles sempre lutaram contra isso, que no fundo é o interesse econômico. O inimigo é o mesmo. Acho que seria uma frustração muito grande. Eles iam ver que, na verdade, a exploração comercial, que sempre existiu, continua prevalecendo. Hoje seriam mais uma voz de protesto, mas que teria pouco peso diante do nosso Legislativo e do Executivo.

    As ameaças partem de onde?

    A primeira de todas é o agronegócio. Sem querer colocar todos no mesmo saco. Sem dúvida, tem pessoas mais conscientes. Mas vi, em uma entrada do Xingu, uma placa de indicação de terra indígena que você mal consegue ler, de tanto buraco de bala.

    O fato é que, sobretudo nas regiões Centro-Oeste e Norte, áreas onde há uma cobertura menor da mídia, disputas de terra e atos de violência acontecem constantemente, mas só ganham espaço quando ocorre uma tragédia.

    Como vê o fato de Michel Temer apoiar o "marco temporal" [tese segundo a qual os índios não podem reivindicar áreas que não estavam ocupadas no momento da promulgação da Constituição de 1988]?

    Essa é a carta que todos lançam com relação à demarcação de terra, é a primeira [argumentação] a ser levantada.

    Está havendo aceleração nas pautas contra direitos indígenas no atual governo?

    Sim, intensamente, sobretudo de alguns meses para cá. Por conta do jogo político com o Congresso, o governo tem cedido mais [aos interesses contrários aos indígenas]. Como ele [Temer] precisa de apoio na Câmara, propostas que antes estavam paradas agora começam a se efetivar, estão no momento ideal para serem colocadas em prática.

    Como avalia o papel da Funai?

    A Funai está bastante fraca. Mas já vinha nos governos Dilma e Lula. O que ouvi de sertanistas e indigenistas de uma leva antiga da Funai é que a fundação e a política indigenista nunca sofreram tanto quanto a partir do governo Lula. Era de se pensar que um governo de esquerda olhasse pela causa, mas não aconteceu.

    O sr. foi indicado para a presidência da Funai em 2016. Sentia-se preparado para assumir? O que poderia fazer?

    Eu me lembrei do que o meu pai falava: sozinho não dá para fazer nada, mas, conhecendo as pessoas certas, você pode fazer um bom trabalho. A Funai tem funcionários muito bons. No entanto, os cargos estão a serviço de indicações políticas.

    Dá para esperar avanços?

    Eu não vejo como isso pode melhorar até o fim deste governo. E quem está na Funai, com quem eu converso, também vê dessa forma.

    Acredita que a pauta indígena será discutida pelos candidatos na eleição presidencial?

    Não sei, mas deveria. Estamos falando de uma questão que envolve quase 1 milhão de pessoas. Todos os ganhos na área foram suados. E agora a gente vê esse desmonte.

    Há preconceito com a questão?

    Sempre teve. O argumento mais raso é aquele de "índio com iPhone, como é que é índio?". Que bobagem é essa? Qual é a lógica desse argumento? Por que não podem ter as coisas que pertencem à nossa sociedade? O que isso interfere na identidade deles?

    Por quê?

    São elementos de fora da cultura deles que eles fazem uso. E aliás utilizam muito melhor do que a gente, porque usam o WhatsApp para se organizar para reuniões, para tratar de coisas políticas, do que sai na internet. E para amenidades também, como nós. Mas o índio continua vivendo na própria cultura, tendo a sua crença, na sua estrutura social, que é tribal, fazendo as suas festas religiosas e seus rituais, sobrevivendo daquilo que ele planta e coleta. No que isso interferiu na identidade dele enquanto indígena, o fato de ele possuir um aparelho eletrônico? Em absolutamente nada. Existem interferências externas muito mais danosas para as tribos, como tentar catequizá-las, evangelizá-las.

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