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    Após ir a pé de BH a Miami, artista mineiro transforma a vida na própria obra

    SILAS MARTÍ
    DE ARAL MOREIRA (MS)

    25/08/2013 02h30

    Paulo Nazareth acaba de decepar fiapos inúteis de um tronco de árvore para fincar um moedor de cana na madeira. Ele está numa clareira no meio da mata, terra dos índios guarani- caiová, em Aral Moreira, no Mato Grosso do Sul. Olha para mim, o sol da manhã faiscante atrás de sua cabeleira armada, e mostra o facão enferrujado. "Está vendo isso? Isso é arte contemporânea."

    Paulo Nazareth retoma os anos 1970 para fazer arte como exercício de liberdade

    Talvez, antes de olhar para o facão, seja melhor examinar os seus pés. Nazareth tem os pés mais rachados, esfolados, arranhados e machucados da arte contemporânea. Ele já andou, ou diz que andou, da periferia de Belo Horizonte até Miami, passando por aldeias indígenas Brasil afora, fazendo um desvio para o sul, avançando Argentina e Uruguai adentro, e atravessando a América Central –trajeto que levou um ano. Nunca ficou claro se ele fez mesmo tudo a pé, até porque perdeu o passaporte no caminho, mas fez desenhos, fotografias e gravuras dessa jornada.

    Sua próxima caminhada será pela África, onde deve partir de Moçambique a pé para chegar, meses depois, à Argélia e pegar um barco para a França. Antes da partida, veio até essa aldeia para ser batizado como um guarani-caiová. Ele quer fazer parte da tribo. Aprendeu a falar guarani, que exibe garboso até em mensagens de texto que manda pelo celular. E trava longas conversas com o pajé, que reza para que nada de ruim aconteça com o artista em suas andanças pelo mundo.

    Na tribo, todos lembram a primeira aparição do artista por ali. Era um dia de chuva. Ele chegou de chinelo, arrastando um carrinho de feira, na hora da reza, quando as 14 portas do céu guarani estão abertas às súplicas terrenas, de acordo com a cosmogonia indígena. Narram assim sua chegada, a descrição de um quase messias, que veio aprender em vez de pregar, ou um "cachorro velho que já fuçou tudo", nas palavras de um dos índios.

    Comigo foi um pouco diferente. Ele marcou data e hora para o encontro na aldeia, mas não estava lá quando cheguei. No dia seguinte, depois de dormir na rede que ele mesmo deixara pendurada na oca, comecei a atravessar o milharal que separa a aldeia da estrada e dei de cara com o vulto do artista vindo ao meu encontro, um estranho Moisés abrindo caminho na plantação. Levava sobre a cabeça um saco de estopa e balançava um chocalho como uma espécie de cumprimento. Desse mesmo jeito místico, Nazareth se firmou no panteão –e no mercado– da arte atual, abrindo alas ao arquitetar uma mitologia ao seu redor.

    Mineiro de Santa Luzia, o artista de 36 anos diz já ter sido gari e cuidador de porcos. Só foi descoberto quando entrou para o curso de belas artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Causou frisson mesmo há dois anos, quando empreendeu sua caminhada de Palmital, favela onde mora nos arredores de Belo Horizonte, até Miami, onde participou da feira Art Basel Miami Beach, uma das mais importantes do mundo.

    QUERIDINHO EXÓTICO

    Lá, na sua primeira operação de peso, Nazareth exibiu os pés destruídos e se colocou diante de uma Kombi cheia de bananas, com um cartaz em inglês que dizia "vendo minha imagem de homem exótico". Desde então, já participou de mostras no Masp, onde foi premiado como artista revelação, e no New Museum, em Nova York.

    Ele e sua obra são indissociáveis, o que chama de "performance expandida". Seu galerista em São Paulo, o franco-americano Matthew Wood, diz que sua vida toda é uma espécie de "mise-en-scène". "Ele lida com a construção de narrativas", diz Matthew. "É uma forma de lembrar que identidades são fluidas, que a gente vive num mundo inconstante."

    Sua obra pode ser a simples presença de um andarilho que atravessa o mundo fazendo contato com realidades agrestes, de índios, negros, favelados e também de marchands endinheirados. "Teve caminhada, carona, ônibus, barco, tudo sempre próximo da terra. Andei muito, até os pés se abrirem e beijarem o chão, deixando marcas de sangue no solo", dramatiza Nazareth. "Levo essa terra comigo aonde for, essa terra se torna parte de mim."

    É essa terra que Nazareth quer levar no corpo até Lyon, misturando o chão vermelho da aldeia ao solo africano das antigas rotas de escravos, por onde passa antes de aportar em terras francesas.

    Ele, que agora tem uma série de obras em cartaz na Bienal de Veneza, também está escalado para a Bienal de Lyon, feito que poucos artistas em sua idade conseguem. Do curador suíço Hans Ulrich Obrist, considerado o mais influente do mundo, passando pelo italiano Massimiliano Gioni e pelo islandês Gunnar Kvaran, artífices de Veneza e Lyon, Nazareth só recebe elogios hiperbólicos. Virou o queridinho exótico da hora.

    Na cidade dos canais, ele foi ao encontro das expectativas de um público ávido pela "última moda" da arte feita nos trópicos e mostrou os resultados de seu contato com os índios. Além de um vídeo gravado na aldeia e objetos garimpados na jornada, levou para lá dois índios, Genito Gomes e o pajé Valdomiro Flores, para que narrassem ao jet set da arte casos de violência e histórias de índios mortos no Brasil.

    Não foi à toa que Nazareth escolheu essa aldeia no Mato Grosso do Sul. Neto de uma índia e filho de um pai negro com uma mãe meio índia meio italiana, Nazareth foi buscar nos guarani-caiová um elo simbólico de parentesco.

    Também ficou tocado com o assassinato do cacique da aldeia, morto por pistoleiros há um ano e meio. Alvejado, o pai de Genito Gomes teve o corpo jogado na carroceria de uma caminhonete e nunca mais foi encontrado.

    Em outubro do ano passado, uma carta de índios dessa mesma etnia, ameaçados de despejo de suas terras no Mato Grosso do Sul, causou comoção ao sugerir um suicídio coletivo na aldeia, chamar de genocídio a expulsão da tribo dali e exigir uma vala comum para todos os seus corpos.

    Num furor midiático, o apelo desencadeou também uma onda de apoio aos índios nas redes sociais, com gente de todo tipo trocando o sobrenome por "guarani-kayowá" no Facebook.

    PRETO, PRETO, PRETO

    Então, lembro o facão. Na obra de Nazareth, a violência aparece velada. Nada de sangue, só a arma. Seus retratos com gente que encontra na estrada, ele sempre com a mesma expressão dura, servem de navalha. Sublinham diferenças de raça e origem que determinam o destino dessas pessoas, criando uma narrativa sobre injustiça ou subjugação com roupagem irônica, arquétipos de pobreza que ganham força quando deslocados do Mato Grosso do Sul para Veneza ou Lyon.

    Enquanto posava para a Serafina na aldeia, pediu para um menino fazer um retrato seu ao lado de uma índia vestindo uma camiseta com a frase "Eu amo Nova York". Na hora do clique, ela escondeu os olhos atrás de um facão, gesto instintivo por causa do sol forte, mas que ficou plasmado ali como mais um flagra de vidas em desajuste que Nazareth tanto gosta de documentar. Talvez seja esse incômodo que ele descreve quando fala em pé atrás.

    "Fico o tempo todo com o pé atrás. Deixo meu cabelo 'black power' dando um passo atrás, olhando de longe", diz o artista. Nazareth fala do visual e de sua cor –ele se diz "preto, preto, preto– como elementos de choque no circuito da arte, em grande parte branco. "Sou preto e sou da favela. Eles me olham esquisito. Se vão escolher um preto para premiar, me escolhem. Mas, se vão escolher um branco para castigar, também podem me escolher."

    Ele lembra quando é barrado em vernissages e jantares ou revistado na rua pela polícia, só pelo visual –sempre de chinelos e arrastando um carrinho de feira cheio de tralhas, que vão de sementes de milho a uma canoa em miniatura.

    Enquanto conquistou a simpatia de alguns, outros veem sua performance como retrato exagerado de uma luta de classes ancorada na questão racial.

    Nazareth só diz que faz o que faz perto ou longe dos holofotes, não busca plateia. Tanto que continua morando na favela onde cresceu, fazendo no máximo uma reforma na casa para receber os amigos. Embora seja um sucesso de crítica, suas caminhadas não rendem produtos tão fáceis de vender.

    "Tudo isso pode ser visto como sensacionalista, ele querendo ser um ícone, mas na verdade é um movimento pela liberdade", analisa seu galerista. "Ele fala de mulheres que se dizem homens, de pretos que se dizem brancos, de tragédias e felicidades. Eu não sei bem até hoje quem ele é. Só sei que ele é bom e gentil."

    E que vale ouro.

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