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    Ney Matogrosso, Angela Ro Ro e Leiloca discutem loucuras dos anos 70 e 80

    ADRIANA KÜCHLER
    DO RIO

    27/07/2014 02h00

    "Alguém tem colírio?", pede Ney Matogrosso. "Qual é seu signo?", indaga Leiloca, das Frenéticas, a quem passar na frente. "Qual é seu nome?", questiona Angela Ro Ro, enquanto simula uma sessão de autógrafos com os CDs e DVDs que trouxe para distribuir.

    Angela, 64, não quer tirar o tênis de academia de jeito nenhum. Pede que lhe penteiem e tampem a careca. Ney, 72, diz que, enquanto os cabelos da cabeça rareiam, os do peito só crescem. Leiloca, 63, hoje astróloga e palestrante motivacional, reclama que não foi avisada de que teria que se enrolar num tecido. "Teria vindo de sutiã." Os três tiram selfies. Leiloca mostra pra Ney: "Gostou?" Ele responde: "Não enxergo nada".

    Os três ícones da música pop brasileira fazem parte do período retratado no livro "Pavões Misteriosos", do jornalista André Barcinski, que será lançado pela editora Três Estrelas na Flip.

    Livro
    Pavões Misteriosos
    André Barcinski
    Pavões Misteriosos
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    "Desde quando você transa golfinhos?", pergunta Angela, confundindo o evento literário com o boto Flipper.

    A obra narra histórias curiosas de um período exuberante da música brasileira, de 1974 a 1983 -no intervalo entre o auge da MPB politizada, de Chico, Caetano e Gil, e o surgimento do rock nacional, de Legião Urbana, Capital Inicial e Titãs.

    "Foi nesse período que a música jovem dominou o país. Foi ali também que as rádios FMs se popularizaram, os discos com trilhas de novelas se tornaram o motor da indústria musical, o jabá se 'profissionalizou', a discoteca explodiu e a onda de covers se espalhou pelo país", diz André, que entrevistou 65 pessoas, de artistas a produtores e executivos.

    "Em 1974, pela primeira vez um disco de artista novo -e um disco pop- chegou ao primeiro lugar da parada: 'Secos e Molhados' (lançado em 1973). E 1983 foi o ano da explosão do Ritchie com 'Menina Veneno', que prenunciou o sucesso do BRock de Legião, RPM..."

    Nessa época surgiram nomes como Guilherme Arantes, Sidney Magal, Lulu Santos, Fafá de Belém e Gretchen. Apareceram uns tantos artistas autênticos, outros fabricados e até falsos gringos -brasileiros que cantavam em inglês e se fingiam de estrangeiros.

    Com alguma dificuldade, conseguimos fazer nossos três convidados, comparsas do desbunde setentista e oitentista, sentarem com o autor do livro para uma conversa sobre censura, jabá, ditadura, pó de guaraná e loucuras afins.

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    CRIAR EM TEMPOS DE DITADURA

    Ney: É um paradoxo. Nós vivíamos sob uma ditadura, e o comportamento era uma válvula de escape. Não tinha essa história de politicamente correto de hoje, que é chata pra cacete. Todo mundo era liberado, talentoso, chegando com o pau duro querendo fazer coisas boas... Hoje, dá pra contar nos dedos quem faz coisas interessantes. Naquela época, era em bloco.

    Leiloca: Pegamos carona na loucura dos anos 1960, 1970, sexo, drogas, rock'n'roll. A gente comprou aquele pacote. Todo mundo era paz e amor.

    Angela: A gente estava numa ditadura, mas não estávamos tragicamente ligados a ela. A gente fez uma guerrilha sem armas. Nossa arma era a arte.

    Ney: A minha era a libido! Eu jogava minha libido na cara deles e esfregava [espalma uma mão com a outra].

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    CENSURA

    Ney: A preocupação do governo era com a política partidária, com o comunismo. Eu me apresentava na televisão seminu. Só tinha um tapa-sexo e, por cima, eram trapos e franjas, que eu rodava e aparecia minha bunda. Eu acho que o Secos e Molhados passou [pela censura] porque a gente nunca falou "abaixo a ditadura", a gente tava cagando pra ditadura.

    Angela: A polícia nem entendia do que se tratava aquela gente parecendo que tinha saído do filme "Hair". Você podia estar com um baseado de maconha no meio da praia e não acontecia nada. Além disso, a turma era de classe média e alta, tudo neto de general, filho de coronel, costas quentes.

    Leiloca: Em 1970, a gente ficava viajando de ácido, na praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, a polícia passava e não falava nada.

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    CHACRINHA E O JABÁ

    O tema da vez é o jabá, pagamentos ou presentes que as gravadoras davam às rádios e às TVs para que divulgassem os seus artistas. O apresentador Chacrinha (que teve atrações nas tevês Globo, Tupi e Bandeirantes no período), segundo vários cantores, inventou seu jeito de fazer jabá: em troca de aparecer no programa, fazia os artistas se apresentarem de graça em shows promovidos por ele.

    Angela: O que jabá tem a ver com Chacrinha? Jabá tem a ver com jerimum, pergunto eu? Como assim, jabá?

    Ney: É o que a gravadora paga para as rádios e televisões tocarem músicas de um artista.

    Leiloca: Todo mundo sabe, gente!

    Ney: Vou te lembrar o que era o jabá no começo. Dava 20 g de cocaína pro radialista, e ele tocava a música. Depois, dava uma passagem pra Nova York.

    Angela: Droga? Pra radialista?

    Ney: Siiiim, meu amorzinho!

    Leiloca: Ela nasceu ontem...

    Angela: Eu nunca ouvi falar disso. Nunca me propuseram nada parecido. E eu tava no Chacrinha o tempo todo.

    Leiloca: Também não propuseram pra mim. Sabia que tinha jabá nas gravadoras porque os artistas falavam entre eles. Mas nós, Frenéticas, não tínhamos acesso a essa informação.

    Ney: Tinha sim esse esquema do Chacrinha. Quem não fizesse não aparecia no programa. E não era um showzinho de graça. Você tinha que sair na madrugada e fazer três clubes numa noite. E dublando! Eu disse que não faria e continuei aparecendo no programa. Parei de ir por outra razão.

    Angela: Por quê?

    Ney: Uma vez, a censura foi em cima do Chacrinha por causa dos closes ginecológicos que eles davam nas chacretes. Aí, ele foi chamado lá em Brasília e disse: "Por que o Ney Matogrosso pode cantar seminu, e as chacretes não podem?" Fiquei anos sem ir no Chacrinha por causa disso. Voltei quando ele ficou doente. Não queria que ele morresse com a gente cruzado.

    Leiloca: O Chacrinha me chamava pra ser parte do júri de calouros. Ele chamava: "Elke! Sylvinho Cabeleireiro!", que Deus o tenha... Quando chegava a minha vez, era: "Alô, alô, Leiloca, aquela que gosta duma mandioca!" E mostrava uma mandiocona. O Chacrinha foi o maior louco que a gente teve.

    Angela: Você sabe que eu tinha tesão na vedete Virginia Lane quando eu tinha uns quatro anos? Foi a primeira bandeira que eu dei de ser gay...

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    APELO INFANTIL

    Leiloca: Estava eu no Posto 9, jogando frescobol com a Glória Maria, quando vem uma garota tipo socialite com uma criancinha de uns quatro anos de idade. Ela chegou numa pegada sincera. Meu ascendente é áries, então eu amei. Ela disse: "Oi, Leiloca, queria te confessar um negócio. Quando vi vocês cantando 'Vou fazer você ficar louco dentro de mim', eu achei muito pesado. Mas aí eu vi minha filha cantando na frente da TV, 'dentro de mim', e entendi a pegada de vocês". Ela viu que era um preconceito. Quando As Frenéticas faziam show no teatro Tereza Rachel, todo mundo ia com os filhinhos, o Arnaldo Jabor, o Cacá Diegues...

    Ney: Os adultos viam sexualidade nos Secos e Molhados, mas as crianças adoravam. Elas foram nosso salvo-conduto. Para elas, a gente era um desenho animado. Aquele ser engraçado, com uma pena de um metro na cabeça, se requebrando. Mas sei de pais que desligavam a televisão quando a gente aparecia. Muitas crianças apanharam porque me imitavam.

    Leiloca: Deviam fazer isso quando aparecesse corrupto na televisão, né?

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    LOUCURINHAS

    Leiloca: Encontrei com o Raul Seixas durante uma turnê das Frenéticas pelo Nordeste. Ele estava hospedado no mesmo hotel que a gente. Eu tinha comprado um toco de guaraná, assim, bem fálico. Você ralava, botava na água e virava guaraná em pó, que nem o que se toma hoje em dia, industrializado. Raul apareceu no meu quarto e perguntou: "Você tem alguma coisa aí?" Ele viu o toco e perguntou se dava onda. Pedimos um ralador na recepção. Você precisava ver a cara do concierge chegando com um ralador na bandeja. Ralamos e cheiramos. Deu uma onda... Mas eu acho que era autossugestão. A gente era muito maluco. Mas hoje sou uma senhora idosa, nem cigarro eu fumo. Só me resta um bom champanhe.

    Ney: Sempre tomei guaraná... Mas, se for falar de loucura, a gente vai ficar aqui até amanhã.

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    DO BAÚ

    Coisas que só poderiam acontecer na indústria musical brasileira dos anos 1970 e 1980:

    Quando o Secos e Molhados estourou, em 1973, a demanda pelo disco foi tão grande que a gravadora Continental teve que derreter LPs encalhados para fabricar mais vinis do grupo.

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    Um dos fenômenos da época, os "falsos gringos" cantavam em inglês ou fingiam que eram estrangeiros. Fábio Jr. foi um deles. Lançou um LP como Mark Davis e evitava conversar com as fãs para que não notassem que não era americano. "Dava autógrafos, mas não podia falar com elas."

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    Sidney Magal era primo de Vinicius de Moraes e queria cantar bossa nova. Foi desaconselhado pelo parente: "Com esse tamanho todo, bonito assim, tem certeza de que quer cantar bossa nova?"

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    O produtor musical Mister Sam, que "inventou" Gretchen como uma cantora alemã que nem falava português, compôs a letra de "Freak Le Boom Boom" usando uma apostila de escola de inglês. "Nunca falei inglês. A letra não queria dizer nada, mas, pelo menos, rimava."

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    Roberto Menescal queria gravar um disco de Xuxa em sua gravadora, a PolyGram. Mas um executivo holandês da empresa se recusou a dar dinheiro para o álbum. Menescal então pegou registros de arquivo de Caetano Veloso, Chico Buarque e Marina Lima e fez Xuxa cantar como se estivesse fazendo duetos com eles. "Xuxa e Seus Amigos" vendeu 500 mil cópias sem custar nada.

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    Um elenco badalado foi reunido por André Midani, da gravadora Philips, para tentar descobrir o segredo do sucesso. Entre eles, o escritor Rubem Fonseca e a psiquiatra Nise da Silveira. Mas o grupo fracassou. "Aquilo era um saco", diz Odair José. "Tim Maia ficou cinco minutos em uma entrevista dessas e disse que ia pra casa fumar maconha."

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    Na época, gravadoras brasileiras ganhavam dinheiro com covers de sucessos tanto em inglês quanto em português. O auge do fenômeno aconteceu com Wando, que fez um cover dele mesmo. "Ele precisava da grana e topou gravar suas próprias músicas para um disco de versões", diz o produtor Antonio Paladino.

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    Antes da fama, a banda Roupa Nova também fez parte do fenômeno dos covers, com o pseudônimo de Os Motokas. O cantor Paulinho conta que, em um mesmo disco, tinha de imitar Julio Iglesias, Benito di Paula e Genival Lacerda.

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    Ritchie virou pop star em 1983, quando "Menina Veneno" foi o compacto mais vendido do Brasil. Mas a carreira afundou em pouco tempo sem ninguém entender por quê. Tim Maia declarou em entrevista, na época, que Roberto Carlos (que era da mesma gravadora de Ritchie, a CBS) tinha puxado o tapete do inglês, por ciúme.

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    Guilherme Arantes virou galã e não gostou. "Eu tinha raiva de ser bonito, os compositores importantes eram feios. Tinha uma puta inveja do Zé Ramalho." Associado à música brega, ouviu elogios de Tom Jobim: "Várias vezes, tive inveja de você como compositor."

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