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    Jornalista revelou escândalo de espionagem americana de uma varanda no Rio

    SYLVIA COLOMBO
    DO RIO

    27/07/2014 02h00

    "Cuidado, cão bravo", diz a placa. Basta parar o carro e o som de latidos de nada menos que 12 cachorros começa a soar. Assusta um pouco. "Nenhum morde", afirma com forte sotaque gringo Andrew, o assistente norte-americano que abre o portão da casa. Faz um pouco de frio naquele ponto do Alto da Boa Vista, na zona norte, pelo menos uns três graus a menos do que na zona sul. É Rio de Janeiro, mas com clima de serra.

    Na varanda, há uma cadeira e uma mesa simples de madeira. Sobre ela, um laptop modesto da marca Positivo. Ninguém diria que a partir dessa casa, encravada em plena mata carioca, sairia um dos furos (uma notícia em primeira mão) mais importantes dos últimos anos.

    Como conta o jornalista norte-americano Glenn Greenwald, 47, em seu livro "Sem Lugar para se Esconder" (Ed. Sextante), que teve lançamento mundial em junho, ali estava ele quando começou a se corresponder via e-mail com alguém misterioso que se identificava apenas como Cincinnatus.

    Sob esse pseudônimo se escondia Edward Snowden, um jovem ex-agente de inteligência do governo dos EUA. Glenn na época era um blogueiro do jornal britânico "Guardian" e se dedicava a denunciar abusos aos direitos humanos praticados pelo governo americano.

    Por conta das denúncias veiculadas pelo blog, Glenn foi escolhido por Snowden para ser o porta-voz da revelação que queria fazer ao mundo: a NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA) estava monitorando telefonemas, e-mails, mensagens de texto e outras formas de comunicação de milhões de americanos comuns e de alguns líderes mundiais, como a chanceler alemã, Angela Merkel, e a presidente brasileira, Dilma Rousseff, além de investigar concorrentes econômicos de empresas do país, como a brasileira Petrobras.

    "Eu fiquei tão eletrizado pelo que Snowden prometia revelar que a sequência das negociações e o primeiro encontro com ele, em Hong Kong, assim como o modo como armamos a divulgação dos dados, foram como um filme de suspense. Tentei transmitir isso no livro", diz ele à Serafina.

    A primeira parte dessas informações vazadas por Snowden sairia publicada em forma de uma série de matérias de Glenn no "Guardian", em meados de 2013. Desde então, os documentos de Snowden ainda rendem, e mostram que o sistema de espionagem do governo norte-americano, com a justificativa de proteger o país de ameaças terroristas, invade a privacidade de pessoas e empresas. A finalidade, segundo Glenn, não é apenas política mas também visa favorecer economicamente empresas baseadas no país.

    IMPACTO MUNDIAL

    Com uma narrativa envolvente, "Sem Lugar para se Esconder" parece escrito para ser transformado no roteiro de um filme hollywoodiano. Algo que de fato deve acontecer, pois seus direitos de adaptação para o cinema já foram comprados pela Sony Pictures. A produção ficará a cargo dos mesmos executivos responsáveis pela franquia James Bond.

    "O grande medo que tínhamos na época era o de que o impacto não fosse grande. Snowden temia colocar a vida em risco e, mesmo assim, as pessoas ficarem indiferentes. Eu mesmo sabia que é fácil convencer as pessoas de que é preciso comer, beber e cuidar da saúde, mas muito abstrato dizer a elas que devem proteger sua privacidade", explica o autor, que estará na próxima Festa Literária Internacional de Paraty (entre 30 de julho e 3 de agosto).

    Glenn dividirá a mesa "Liberdade, Liberdade" com o documentarista Charles Ferguson, que ganhou o Oscar de melhor documentário com o filme "Trabalho Interno" (2010), sobre a crise econômica de 2008.

    "Tivemos sucesso. Hoje, alguns países mudaram o modo de se relacionar entre eles, como o Brasil e os Estados Unidos, depois que revelamos a espionagem norte-americana à Petrobras. E mudou o modo como cidadãos de outros países veem os EUA. Agora, há um olhar muito mais crítico", diz Glenn.

    O curioso, ressalta, é que as coisas que escreve ali, em seu endereço bucólico, podem afetar as relações diplomáticas internacionais e colocar funcionários do governo americano contra a parede. Mas, quando Glenn fecha o computador, parece que tudo some. "É o que a internet proporciona. É como se nada estivesse acontecendo lá fora, mas está. Trabalhar aqui me proporciona equilíbrio e um olhar distante, importantes para meu trabalho."

    POR AMOR

    Glenn instalou-se no Brasil por causa de seu companheiro, o brasileiro David Miranda, 29. Veio ao país pela primeira vez, de férias, no ano 2000. Gostou tanto daqui que, em 2005, voltou e alugou um apartamento por dois meses. Logo nos primeiros dias, conheceu o rapaz, um ex-morador da favela do Jacarezinho, que estava jogando vôlei na praia de Ipanema. Foi amor à primeira vista.

    Apaixonado, o norte-americano decidiu se mudar para o Rio e começar a escrever seu blog sobre política. Foi ali que fez as primeiras reportagens que chamariam a atenção de Snowden.

    David e Glenn pensaram em mudar para os EUA, mas na época o país não dava vistos para companheiros homossexuais. O norte-americano pediu, então, visto de permanência no Brasil como jornalista e passou a trabalhar daqui.

    Hoje, esse impedimento nos EUA não existe mais. O problema é outro: Glenn passou a temer ser preso, por conta da aliança com o ex-agente, hoje buscado pela Justiça dos Estados Unidos. Neste ano, o jornalista voltou ao seu país para a turnê de lançamento do livro. Falou em auditórios e livrarias, defendeu abertamente Snowden (hoje asilado na Rússia) e criticou o governo de Barack Obama na televisão. Não foi importunado.

    "Mas não dá para saber. Agora me sinto bem aqui, me sinto seguro pelo apoio do governo brasileiro e já digo que sou um carioca. Faz quase dez anos que moro no Rio, tenho amigos, gosto da comida, assisto à TV, construí uma vida ao lado de David", explica Glenn, que fez questão de conceder a entrevista em português.

    O casal passa muito tempo em casa. Os dois são fãs de séries de TV e de videogames. David está terminando o curso de marketing da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) e ajuda Glenn em suas investigações. No livro e na entrevista, o norte-americano pontua e reforça a importância do companheiro nas decisões que ele toma, desde como se relacionar com os editores do "Guardian" até se Greenwald deve ou não aparecer num programa como o "Fantástico", na Globo.

    Em agosto de 2013, as autoridades britânicas detiveram David em Londres, quando ele tentava voltar ao Brasil vindo de Berlim. O estudante havia se encontrado com a jornalista Laura Poitras, também vinculada a Snowden, e trazia consigo documentos relativos ao caso. Interrogado por nove horas, David foi liberado, mas teve computador, celular e arquivos digitais confiscados. Glenn ficou transtornado. Na época, ouviu acusações de que o companheiro podia ser um jovem ingênuo, sem formação, influenciado por ele. "David foi um órfão que teve de cuidar de si mesmo. É um absurdo pensar que eu pudesse manipulá-lo a fazer algo que ele não quisesse. Muito disso é puro racismo e etnocentrismo."

    David perdeu a mãe aos cinco anos, deixou a casa da tia aos 15 e trabalhou como entregador de panfleto, office boy e gerente de uma casa lotérica. Fez supletivo e hoje fala um inglês fluente.

    Os dois vivem com relativa tranquilidade no Rio, mas já passaram por alguns sustos. Numa ocasião, quando estava viajando, Glenn conversou com David por Skype e avisou que enviaria um arquivo importantíssimo para que o companheiro guardasse. Passaram-se menos de 48 horas, e o laptop de David desapareceu da casa. Glenn pensou que era um roubo. David não acreditou, disse que o desaparecimento do computador deveria estar relacionado ao arquivo mencionado, uma vez que nada mais havia sido levado. O caso nunca se esclareceu, mas ambos ficaram com a sensação de não estarem livres de alguma vigilância na casa do Alto da Boa Vista.

    Glenn não perde oportunidade, aliás, para dizer que todos devem se preocupar com a invasão de privacidade na era eletrônica. Mesmo que uma pessoa não tenha nada a esconder, defende, é um perigo estar vulnerável à vigilância dos governos. "Uma sociedade que se sabe observada fica frágil, age com medo, se sente constrangida a obedecer."

    PRIVACIDADE

    "A privacidade virou algo essencial no mundo de hoje. Se você é um jornalista, um médico, um ativista de direitos humanos, mais do que os outros, é essencial ter e-mails criptografados", diz. Criptografar significa proteger uma mensagem para que apenas a pessoa que envia e o destinatário possam lê-la. Para fazer isso, é preciso baixar uma série de programas disponíveis na internet."É necessário para proteger não só você mesmo, mas seus clientes, pacientes ou fontes."

    As matérias renderam a Glenn um Pulitzer e outros prêmios importantes, como o George Polk. Na sequência, deixou o jornal inglês para se engajar no projeto The Intercept, um site de notícias políticas em que continua divulgando os documentos que Snowden passou para ele. O Intercept é um investimento do bilionário Pierre Omidyar, fundador do gigante de compras e-Bay.

    "Eu não o faria se não tivesse certeza de que seria algo independente", diz, ao se defender das críticas de haver "privatizado" o arquivo de Snowden. E rebate: "Isso não é verdade, muita coisa está com outros grandes jornais, e eu só divulgo quando posso fazê-lo com total liberdade".

    Lançado às pressas, o Intercept ainda não está totalmente pronto. Por enquanto, serve de meio para seguir divulgando documentos vazados por Snowden. Trata-se de mais e mais detalhes sobre quais cidadãos e empresas são vigiados pelo NSA. Nos últimos dias, por exemplo, ele revelou a identidade de cinco cidadãos americanos muçulmanos que estavam sendo investigados pelo governo. A ideia é que, no futuro, o Intercept se consolide como um site político, que cubra outras áreas relacionadas ao poder.

    "Queremos adotar um tom agressivo, que contraste com o de jornais tradicionais. O jornalismo tradicional está quebrado. A grande mídia hoje está muito ligada aos poderosos, aos grandes negócios. E o leitor não é bobo, ele percebe quando um blogueiro ou um site independente está lhe dizendo coisas mais pertinentes. Defendo um jornalismo feito com paixão e contra os poderosos."

    Se as revelações de Glenn vão mesmo mudar as relações entre poder e mídia, não sabemos. O certo é que o jornalista já escolheu de onde assistirá a tudo isso, da varanda da casa carioca.

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