• Serafina

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    Para Alan Pauls, autor de 'O Passado', Buenos Aires flerta com o abismo

    ALAN PAULS
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    22/02/2015 02h00

    Em janeiro de 2002, enquanto a Casa de Governo centrifugava cinco presidentes consecutivamente e o centro histórico da cidade ardia de ira popular e represálias policiais, legiões de viajantes incautos aterrissavam no aeroporto de Ezeiza, convencidos de estarem pisando na sucursal de uma Europa jovem e hospitaleira que os guias e as agências de turismo haviam garantido que veriam.

    Contrariando todas as previsões, a recepção infernal não os intimidou; apenas ressaltou a previsibilidade, o velho cansaço do mundo que deixavam para trás. De modo que encheram os pulmões com cheiro de pólvora e de pneu queimado e foram, revitalizados, fazer aquilo que viajaram para fazer: conquistar Buenos Aires.

    A cena nunca deixou de me surpreender. De que modo aquilo que para qualquer portenho era uma catástrofe –a pior, sem dúvida, dos quase 40 anos de vida democrática do país–, em contato com o sangue de centenas de forasteiros podia se transformar numa fonte de entusiasmo, de excitação, até mesmo de alegria?

    Talvez a cena, com seu efeito um pouco extremo de incongruência, revelasse alguma chave do tortuoso sex appeal desta cidade. Mas, se Buenos Aires continua seduzindo, se hoje seduz mais do que nunca, não é tanto pelas hecatombes sociais ou políticas que tem para oferecer –um menu exótico que agora também é servido em outros lugares do mundo, até em alguns europeus–, quanto pelo mistério incompreensível, e por isso mesmo excepcional, que encarna: o mistério de uma cidade culta, civilizada, tão calcada em modelos europeus que mais de um urbanista francês poderia processá-la por plágio, que volta e meia cai na tentação de se dar um banho de desastre, flerta com o abismo e num par de semanas de orgiástica barbárie aniquila a tradição de maturidade cívica, prestígio cultural e beleza que um dia a transformou num mito invejado por seus pares latino-americanos.

    Em outras palavras: o que atrai em Buenos Aires não são suas virtudes; é sua obscura, irreprimível compulsão para esbanjá-las.

    Não é preciso ser doutor por Harvard para compreender que nada muito sensato ou perdurável pode nascer do esbanjamento. Mas quem vai negar que é sexy?

    Além disso, quem, que não administre a vida como um burocrata, escolheria uma cidade guiado por critérios como bom senso ou perdurabilidade? (De um modo ou de outro, todas as cidades em que se vive são cidades-condenação impostas pelo passado, o exílio, a família, a inércia ou por alguma lealdade cuja raiz não somos capazes de perceber. Os únicos que "escolhem" uma cidade para viver são os multimilionários com problemas de impostos, sempre ávidos por fiscos hospitaleiros.)

    PAÍS JÚNIOR

    No final dos anos 20 do século passado, quando as riquezas naturais, a vitalidade hiperoxigenada e as ambições da Argentina, um país "júnior", ameaçavam ameaçar a liderança das potências "sênior" do mundo, Buenos Aires ainda podia se gabar de ter um elenco variado de playboys, dândis, bons-vivants, gente afortunada, engenhosa e poliglota que em dois ou três anos de vida louca dilapidavam a fortuna, os idiomas, as propriedades, as bibliotecas e o nome que suas famílias haviam conquistado ou administrado com maior ou menor responsabilidade ao longo de décadas.

    É essa raça de super-heróis inúteis, misto de camicases chiques e aristocratas do fracasso, que ainda molda a imagem desta cidade singular, arbitrária, que nunca é tão intensa e expressiva como quando algo obscuro e terrível parece espreitá-la.

    Dessa época dourada datam os primeiros estrangeiros que a descobriram à maneira moderna, não pelo que a cidade era, mas por seu lado B, seu reverso, seu fundo falso: viajantes atraídos menos por lugares capazes de cumprir com o que prometiam do que por cidades-enigma, confins, cus do mundo inexpugnáveis. Marcel Duchamp foi um deles.

    O artista esteve em Buenos Aires entre 1918 e 1919. Passou nove meses praticamente sem fazer nada, dando aulas e se viciando no xadrez, consolando uma namorada de viagem (que saía sozinha na rua e era perseguida por enxames de varões no cio, convencidos de que somente as prostitutas saíam sozinhas na rua) e mantendo na linha a "marchande" feminista que o cortejava.

    Em plena estadia –outro sangrento janeiro portenho–, foi surpreendido pela Semana Trágica, uma greve de metalúrgicos selvagemente reprimida pela polícia que suas cartas, mais atentas ao dentifrício francês que encontra numa farmácia ou à qualidade insólita da manteiga, mal mencionam.

    Por que Duchamp escolheu Buenos Aires? Porque queria sumir do mapa. O mundo estava em guerra, e o fantasma do recrutamento punha sua pele em risco.

    Como aconteceria mais tarde com os jogadores de "Gilda" (Charles Vidor, 1946), que se movem como peixes na água numa Buenos Aires corrompida pelo jogo e pela vigarice, com os pérfidos "Blue Meanies" do filme "Submarino Amarelo" (George Dunning, 1968), que planejam asilar sua maldade em Buenos Aires, e com uma porcentagem nada insignificante de criminosos verdadeiros, Duchamp viu muito bem o que era a capital argentina: uma cidade perfeita para fugitivos.

    TESOUROS DE IMPROVISO

    Essa reputação me deixa tão indignado quanto orgulhoso. Radicalmente alheia, hermética, clandestina, a Tânger de Paul Bowles tinha tudo para ser o que Bowles e seu séquito de drogados e desertores queriam que fosse. A Buenos Aires europeia, a culta, a civilizada, só oferece esses tesouros de improviso, quando menos se espera, como um bônus extra intempestivo.

    A não ser por sua condição remota, requisito clássico de todo esconderijo eficaz, nada em sua linhagem de grande capital cosmopolita faria prever que viesse a satisfazer tão bem os anseios de desaparecimento com que chegam até ela os fugitivos que a inundam (e, há alguns anos, imperdoavelmente, a encarecem), que já não fogem da guerra, do nazismo ou do tribunal de Nuremberg, mas do "spleen", da heroína ou do avanço das regulamentações urbanas e do politicamente correto sobre os direitos civis.

    Mas é nesses sismos que de quando em quando lhe produzem tremores e rachaduras, virando-a do avesso feito luva, que Buenos Aires se revela incerta, selvagem, animada menos pela causa nobre da civilização do que por uma apaixonada pulsão de esbanjamento.

    DE TUDO

    É um lugar-comum, nesta altura do campeonato, dizer que Buenos Aires "tem de tudo": elegância, classe, serviços, cor local, casamento igualitário, hotéis butique, dinamismo, bolsões de quietude provinciana, ciclovias, vida cultural, arquiteturas inteligentes, esnobismo, vinhos excelentes, histeria.

    Gosto de viver numa cidade que "tem de tudo"? Não estou certo disso. Porque as cidades ignoram, compensam, fantasiam as coisas que não têm, e frequentemente as repõem de formas insensatas, com uma imaginação desenfreada, e nessas formas de restituir ou dissimular o que falta há muito mais originalidade e mais soberania que em qualquer opulência quantificável.

    Sou o primeiro a protestar como um energúmeno quando ando pela cidade e um bloqueio de rua não anunciado me obriga a improvisar um atalho para seguir meu caminho. Mas quão rapidamente esse furor se transforma em fervor, epifania lírica, quando descubro que os rastilhos de resplendores vermelhos que balizam as obras que obrigaram a bloquear a rua não provêm de lâmpadas de LED último tipo, e sim de baldes de plástico vermelhos, iluminados por dentro por lâmpadas brancas, joia modesta e quase chinesa de bricolagem urbana, que enaltece a cidade muito mais do que tantas esculturas pomposas.

    De qualquer forma, o que a "Time Out", ou o "Lonely Planet", ou qualquer um dos veículos que determinam o capital que as cidades devem ter para figurar em suas páginas nunca dizem é que tudo isso que Buenos Aires tem pode ser perdido a qualquer momento.

    Como se no fundo, bem no fundo, esse patrimônio fantástico do qual a cidade se vangloria repousasse num ponto frágil, extremamente delicado, o mesmo do qual descendem os truques de mágica (que sempre podem falhar) ou o veredicto do acaso que decidirá, quando a roleta parar, se ficaremos ricos ou se vamos quebrar.

    Ainda que agora ""fruto paradoxal, porque feliz, de uma década de ferozes ajustes neoliberais"" seja muito mais latino-americana que há 30 anos, e todo tipo de sotaques e ritmos descarados contaminem a pudica sobriedade do dialeto falado por seus nativos, Buenos Aires não é a Cidade do México nem São Paulo, dois monstros com os quais ela poderia muito bem ser comparada.

    VERTIGEM

    É imensa, sim, e está superpovoada, e também nela os SUVs blindados e os smartphones de última geração ficam lado a lado com misérias que não merecem o nome de humanas. Mas a vertigem de Buenos Aires –essa vertigem que em épocas duras costuma encarnar na violência de um confronto com a polícia ou numa discoteca cheia de menores de idade que pega fogo– não costuma ser tão visível nem é tão material como costuma ser em suas colegas.

    É uma vertigem mais conceitual: mais uma ideia ou uma possibilidade inquietante que um contratempo cotidiano. Mais um perigo que uma evidência palpável.

    Assim, cada vez que saio de casa e sinto o perfume das tílias e pego o metrô e tomo um drinque com um amigo num bar e vou ao cinema e atravesso uma rua e olho o rio e passo a noite em claro, não posso deixar de me perguntar se tudo isso que respiro e tomo e faço –tudo isso que Buenos Aires me dá e dá também a todos os que vivem nela, aos que a descobrem com cautela, aos que caem rendidos diante de seu feitiço– está realmente ali ou é uma ilusão, um "trompe l'oeil" gigantesco, numa escala megaurbana, que amanhã, quando eu acordar e abrir os olhos novamente, terá se volatilizado.

    Alan Pauls, 55, escritor argentino, é autor do romance "O Passado" (Cosac Naify)

    Tradução de Josely Vianna Baptista

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