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    Entre o luxo e o simples, Carnaval na Bolívia mistura folclore e devoção

    FELLIPE ABREU
    LUIZ FELIPE SILVA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NA BOLÍVIA

    21/01/2016 02h00

    Em duas semanas, as ladeiras de Ouro Preto serão dominadas por bloquinhos, os sambódromos de São Paulo e Rio ficarão apinhados de alegorias majestosas e as ruas do Recife serão tomadas por turistas excitados.

    A mais de 3.000 quilômetros de distância (e 3.700 metros acima do nível do mar; São Paulo está a 760 metros), uma grande mistura disso tudo se dará em uma cidadezinha da Bolívia –sim, com ar um pouco rarefeito e tudo, a Bolívia também tem Carnaval.

    Na festa de Oruro, 50 mil turistas se somam aos 260 mil moradoras e lotam as ruas para os "desfiles callejeros".

    A tradição, que vem de tempos pré-coloniais, ganhou seus traços atuais em 1964, quando tocou o tambor da pioneira banda Pagador de Oruro. Com o tempo, cresceu a ponto de ser reconhecida pela Unesco como obra-mestra do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade.

    Os números da celebração são grandiosos: 52 conjuntos passam pelos 4 quilômetros de vielas que constituem a "avenida" (a carioca Sapucaí tem 700 metros), em um espetáculo que envolve 28 mil dançarinos e 10 mil músicos.

    Para o espectador, o lugar mais nobre é a ladeira que leva à igreja da Virgen del Socavón, onde se encerram as danças. Em homenagem à santa é realizado, todo ano, o baile mais importante e bonito, no Sábado de Peregrinação.

    Das 7h até a madrugada, os conjuntos percorrem o circuito, colorindo as ruas com gente fantasiada, animando o público com música alta –mas o clima é diferente da festa brasileira, do "vou beijar-te agora", e, ainda que haja gente embriagada, poucas brigas são registradas.

    PRIMEIRO CONVITE

    O rito do Carnaval de Oruro, na verdade, já começou: o chamado Primeiro Convite (um desfile menor) é feito na festa de Todos os Santos e no Dia de Finados, em novembro. A convocação se repete uma semana antes das festas, no Último Convite. Neste ano, será no dia 31, às 6h30 –um dia antes, às 9h, é realizado o Festival de Bandas.

    Na quinta-feira antes do Carnaval celebra-se a Entrada Autóctona Anata Andina, na qual camponeses trazem flores e frutos para homenagear a chuva pela colheita.

    Sexta é o dia do Convite del Tío-Challa –no folclore, a entidade Tío convida os mineiros para uma bagunça generalizada, que envolve bebedeiras e brincadeiras de jogar água uns nos outros.

    No sábado, na imbatível peregrinação, vêm os conjuntos. Segundo a tradição, abrem os desfiles espécies de abre-alas –caminhonetes que tomaram o lugar antes ocupado por cavalos e burros. Sobre eles (cada um com sua cor e flâmula), prataria, flores e uma imagem santa, para homenagear a Virgem.

    As danças e fantasias misturam o folclore secular ao catolicismo. A "diablada", principal dança, é uma representação cênica do bem contra o mal –mineiros vestidos de diabo em devoção à santa.

    Outras manifestações, como a "morenada" e as acrobáticas "tobas", lembram, respectivamente, a chegada de escravos africanos à região de mineração e os nativos da selva boliviana.

    Quem se apaixonar pela festa pode encomendar máscaras, cetros e fantasias nos ateliês e lojas de trajes, que se concentram na calle La Paz.

    As maiores lojas fabricam até 350 máscaras anualmente. Elas custam entre 280 e 320 bolivianos (de R$ 160 a R$ 190); os trajes, por volta de 700 bolivianos (R$ 400).

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    BRIGA DE DEUSES

    Oruro é ponto de peregrinações desde os tempos incas e, em um país de maioria católica e forte presença indígena, seu Carnaval tem um quê de sincretismo.

    Segundo a lenda indígena, a festa tem origem em uma briga entre o deus Wari e Aurora, filha de Pachacamaj, o deus Sol, pela adoração do povo Uru.

    Ao ser derrotado, Wari teria enviado quatro pragas (hoje representadas por estátuas gigantes espalhadas pela cidade): uma víbora, um lagarto, um sapo e formigas, todos gigantes.

    Caberia à deusa Ñusta eliminá-las, tempos depois. Os urus, em devoção, se vestiram de diabo (uma provocação a Wari) e criaram uma festa.

    Com a chegada dos europeus, Ñusta foi "convertida" pela igreja na Virgen del Socavón (algo equivalente à Nossa Senhora Aparecida). A Wari coube a figura do diabo: vermelho e com chifres, chamado de Tío e habitante das minas, nas profundezas.

    Da disputa entre os deuses e das homenagens à Virgem nasceram os desfiles.

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    FORA DA FESTA

    Fundada em 1606, Oruro é a sexta maior cidade da Bolívia (em população) e uma promissora economia do país.

    O que não significa que seja propriamente rica: o PIB per capita é de US$ 3.228 (dado de 2013); o do Brasil está na casa dos US$ 15 mil. A economia é baseada na exploração de minérios, abundantes no altiplano boliviano.

    O clima é de cidade interiorana, com vias estreitas de paralelepípedo, poucos prédios, construções antigas e muitas casas populares nos morros –que, no Carnaval, contrastam com as fantasias suntuosas.

    Restaurantes e lanchonetes são simples, geralmente dedicados a carne de frango, sopas e empanadas (refeições não custam mais de R$ 30), e há poucos hotéis e pousadas.

    No Carnaval, quando a cidade lota, é comum a foliões se hospedar em casas de família e apelar às comidas "callejeras" (de rua), como choripán, pastéis de queijo e espetinhos, de tão cheios que se põem os restaurantes.

    A festa é praticamente a única atração de Oruro e pouco há o que se fazer para além dela –opções são visitar pequenos balneários de água termal ou fazer um tour à ilha de Panza, no lago Poopó (a uma hora do centro).

    Para o turista que prolongar a estadia, mais vale esticar até Potosí, distante cerca de 300 quilômetros, e conhecer o deserto de sal de Uyuni.

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