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    Sociólogo derruba mitos e discute impasses da gastronomia brasileira

    LUIZA FECAROTTA
    EDITORA DE "COMIDA" E "TURISMO"*

    21/05/2014 02h00

    "Enchi o bolso de cumaru [semente aromática amazônica], em Belém, e distribuí para os chefs em São Paulo para ver como eles reagiam", conta o sociólogo paulistano Carlos Alberto Dória, 64.

    "'O que que é isso?', eles me perguntavam. 'Cumaru'."

    Pois ele está às voltas, há mais de dez anos, com seus estudos sobre a cozinha nacional –e adora fuçar ingredientes obscuros por aí.

    Cipis

    Em "Formação da Culinária Brasileira - Escritos sobre a Cozinha Inzoneira", que será lançado nesta segunda (26) pela editora Três Estrelas, estão reunidos sete ensaios que passeiam pela problematização da nossa gastronomia.

    Dória avança em relação aos registros de Gilberto Freyre (1900-1987) e Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), os dois intelectuais que mais contribuíram para o entendimento da culinária nacional, e derruba mitos fincados no folclore alimentar.

    Um deles é o da miscigenação culinária, que iguala as contribuições de índios, negros e brancos. Ora, em um regime escravocrata, diz ele, não há o elemento mais importante para a criação de uma culinária: a liberdade. Os negros não tinham autonomia nas senzalas e os povos indígenas foram dizimados durante a colonização.

    Outro, que a feijoada brasileira é um prato nacional surgido nas senzalas. Dória recorre a registros históricos que dizem que o feijão-preto enriquecido com carnes surgiu no Rio, no final do século 19.

    Mais: discute a noção de regionalismo. Critica a divisão sociopolítica da nossa culinária (Norte, Nordeste etc.), "que só serve à indústria do turismo", para redesenhar o território brasileiro a partir de "manchas descontínuas" de ingredientes.

    Trocando em miúdos, Dória propõe uma nova divisão do Brasil, do ponto de vista culinário. Nesse contexto, por exemplo, a culinária caipira, concentrada principalmente nos Estados de São Paulo e Minas Gerais (além de pedaços do Centro-Oeste), é marcada pelo tripé do milho, do porco e do frango –e por grande "assimilação de técnicas portuguesas".

    IMPASSES

    Diante do que ele chama de "morte da gastronomia", uma ideia que faz referência à repetição exaustiva de técnicas no mundo todo, que gera uma cozinha "banal e monótona", em suas palavras, o sociólogo propõe como desafio para a cozinha o "reencantamento do mundo".

    Em outras palavras, Dória acha que comer deve voltar a ser, no final das contas, "a velha fonte inesgotável de alegrias". E então destaca dois impasses atuais: o esgotamento da modernização tecnológica e o desafio da incorporação de ingredientes sem que eles percam sua identidade com o Brasil.

    *

    Sob a bancada da cozinha do sociólogo Carlos Alberto Dória, com piso original dos anos 1950, um pacote enorme de farinha de milho.

    De um vidro, pinça um punhado de fuba (não fubá), estica as mãos e me coloca a experimentar aquele milho seco, torrado e moído que "é difícil de conseguir".

    São ingredientes que usou para preparar um bolo, para acompanhar o café coado durante a conversa que teve com a Folha, em sua casa, em São Paulo. Confira trechos da entrevista.

    Marlene Bergamo/Folhapress
    O sociólogo Carlos Alberto Dória durante entrevista
    O sociólogo Carlos Alberto Dória durante entrevista

    Folha - Hoje, faz sentido falar em "cozinha brasileira"?
    Carlos Alberto Dória - A discussão do nacionalismo é colocada muito tardiamente em países do Novo Mundo, especialmente no Brasil, por causa da escravidão. Nação é um ajuntamento político de homens livres. Com a abolição, temos outro contexto. O que procuro mostrar é que hoje a discussão do nacionalismo não faz mais sentido. Há uma internacionalização da economia, da política.

    Então não há mais um enquadramento nacional para a culinária?
    Não. E qual é a diretriz para o futuro? Existe uma corrente de chefs que ainda procura explorar a modernização técnica da cozinha brasileira e aqueles que procuram voltar-se para o território brasileiro na busca de ingredientes.

    A técnica e o ingrediente são impasses atuais, portanto?
    De um lado, a modernização tecnológica, com esgotamento da inovação, cria um beco sem saída. Do outro, é preciso promover a incorporação de ingredientes. Se um valor hoje é a inovação culinária, a coisa mais mortal para a gastronomia é tornar-se banal, monótona.

    Como fugir do banal?
    A gastronomia tem a função simbólica de reencantamento do mundo. Ela tem de trazer nova alegria ao viver. Temos de voltar a descobrir um prazer, uma magia ao comer. Isso se perdeu, o fast food liquidou com isso.

    Quais são os personagens centrais dessa discussão no Brasil?
    A contribuição do Alex [Atala] é muito grande, ele é um cara talentoso e um excelente propagandista. Seu sorvete de jabuticaba com wasabi é uma inovação que tem a cara de uma cozinha brasileira renovada. Por quê? Porque jabuticaba e japonês só se reúnem em São Paulo.

    E a Helena Rizzo?
    A Helena faz uma cozinha elegante, poética. E, embora não seja uma diretriz dela, como é para o Alex, ela vai bordejando alguns ingredientes brasileiros com bom domínio técnico e sensibilidade. Ela é capaz de ir experimentando coisas novas do repertório brasileiro e incorporando-as ao cardápio. Isso, com o tempo, forma uma nova cultura culinária, uma nova cozinha brasileira. É uma questão de tempo e persistência.

    Temos uma geração de chefs capaz de consolidar essa "nova cozinha brasileira"?
    Temos, claro. Esse território é muito instável ainda, mas o número de pessoas cresce. E o fato de estarem em Vitória, como os meninos do Soeta, ou em Curitiba, como a Manu Buffara, agora no Rio, com abertura do Lasai, do Rafael Costa e Silva, engrossa esse exército de Brancaleone.

    Para alcançar a ideia de uma "nova cozinha brasileira", você derruba alguns mitos. Por exemplo, a ideia de que índios, negros e brancos contribuíram de forma igualitária para a miscigenação da culinária.
    O Brasil colonial não expressa integração culinária. O mito da miscigenação esconde o processo violento que destruiu os índios e descaracterizou os negros.

    E o mito de que a feijoada é um prato nacional, criado nas senzalas?
    O que chamamos de feijoada brasileira vai surgir, segundo registros históricos, no Rio de Janeiro. O Rio consome feijão-preto, e essa base é enriquecida com carnes e embutidos que os negros introduzem. Isso passou a ser visto como prato que sintetiza o Brasil.

    E não é por quê?
    O negro não tinha autonomia culinária nas senzalas. Eles consumiam uma dieta calórica com as coisas que se tinha a mão. Ora, isso não constitui um ambiente de liberdade para se desenvolver uma culinária.

    É quando se forma o que podemos chamar de uma "culinária com influência africana"?
    À medida que alguns negros vão comprando sua alforria, vão se estabelecendo em um comércio culinário e começam a formar uma comida de rua. Então se tem uma comida popular, que se desenvolve nas ruas de Salvador e uma comida religiosa que vai se formando nos candomblés. Depois da abolição, essa comida começa a ficar mais comum.

    Há um esforço para registrar a culinária?
    Existe uma ingenuidade de um certo tipo de cientista social que se baseia na urgência de registrar, resgatar. Qual a utilidade disso? Interesse intelectual; não é prático. O exemplo mais bem-sucedido de registro é da França. O inventário da culinária que o Estado francês patrocina se segue de uma tomada de consciência de que muita coisa está se perdendo.

    E no Brasil?
    O envolvimento do Estado é totalmente equivocado. Ele acha que a culinária é uma alavanca do turismo. Mas não está no plano do governo incentivar a gastronomia ou a culinária, só no discurso publicitário que eles falam isso. Temos a clarividência dos dirigentes públicos franceses de um lado e o obscurantismo dos dirigentes públicos brasileiros, de outro.

    Muitos chefs têm publicado livros. Eles contribuem para esse "inventário"?
    Não, porque não é sistemático. Chefs lançam livros porque virou um elemento importante na publicidade do trabalho deles, não é
    para registrar.

    E, sem registro, a cozinha tradicional resiste?
    Resiste nos territórios mais distantes dos grandes mercados e nas famílias. E isso vai sendo corroído por uma modernização muitas vezes de maneira perversa. Por exemplo, a difusão do macarrão, do leite condensado. São sintomas dessas mudanças de hábitos. Tenho notícias de molecada em Salvador que come acarajé com ketchup. E vamos fazer o quê? Não adianta os conservadores tombarem a baiana do acarajé; as pessoas querem coisas novas. O importante é que o gosto vai se transformando.

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