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    'Há algo mágico em compartilhar comida', diz Michael Pollan

    DE SÃO PAULO

    06/08/2014 02h00

    O jornalista americano Michael Pollan, 59, participou de sabatina promovida pela Folha na noite desta segunda-feira (4), na Livraria da Vila do shopping JK Iguatemi.

    Sua obra mais recente, "Cozinhar - Uma História Natural da Transformação" (Intrínseca, 448 págs., R$ 49,90), em que ele defende que voltemos a ter o hábito de cozinhar, foi lançada logo após o evento.

    Pollan foi entrevistado por Luiza Fecarotta, editora de "Comida" e "Turismo", Marcelo Leite, colunista e repórter especial da Folha, e Teté Ribeiro, editora da Serafina.

    Leia a seguir os principais trechos da sabatina.

    *

    Paradoxo do cozinhar
    Vivemos o que eu chamo de "paradoxo do cozinhar": gastamos mais tempo assistindo a programas de culinária na TV do que cozinhando.

    O fenômeno seria construtivo se os programas encorajassem a cozinhar. Mas muitos são competições; seus logos têm facas afiadas, chamas flamejantes, relógios correndo... Isso assusta.

    Livro
    Cozinhar
    Michael Pollan
    Cozinhar
    Comprar

    Fui um feliz beneficiário de outra realidade, pois minha mãe assistia ao programa da Julia Child à tarde e fazia pratos maravilhoso para o jantar. As pessoas dizem que não têm tempo para cozinhar, e eu respeito isso, mas veja quanto tempo você gasta vendo programas de culinária na TV –agora tente gastar a meia hora de um desses programas cozinhando para você; você vai ter coisas incríveis à mesa.

    Hoje, passamos duas horas por dia para fazer algo relativamente novo, que é navegar pela internet. Onde achamos esse tempo? Talvez do tempo que usávamos para ver TV, ou cozinhar. O cerne é que criamos tempo para coisas que julgamos ser importantes –e cozinhar deve ser importante.

    Combustível
    Apesar disso, estamos em um momento interessante, pode ser o começo de uma luta contra a indústria. Nos últimos 40 anos, esquecemos da comida, passamos a tratá-la como combustível e entretenimento.

    Hoje temos a cultura "foodie", gadgets de cozinha, chefs que são celebridades... Trata-se de um interesse sem precedentes pela comida; ainda que possam existir exageros –eu mesmo não tenho muita paciência para a cultura "foodie", isso corrige algo pior, que é a indiferença.

    Comer à mesa
    Vocês [brasileiros] têm uma tradição maravilhosa de comer de um grande recipiente e compartilhar a comida –moqueca, feijoada. Há algo mágico nisso, com um efeito psicológico, de pôr todas as pessoas no mesmo nível emocional.

    Perder a tradição de fazer refeições à mesa não é apenas um problema de saúde –porque estudos mostram que, sozinhos, comemos em maior quantidade. Comida não é só combustível, mas um modo de comunicação, de expressar amor.

    Cheio x satisfeito
    Nos Estados Unidos ensinamos as crianças a comer até estarem cheias. Não perguntamos se elas estão satisfeitas e, sim: "Você está cheio?". Na França, dizem: "Eu tenho fome" e "Eu não temos mais fome", e isso é muito diferente.

    O dilema da carne
    É difícil defender o consumo de carne, por motivos éticos e ambientais. Mas eu ainda como carne –duas ou três vezes por semana– e trabalho para defendê-la.

    É preciso encarar os problemas que a pecuária traz, e geralmente não fazemos isso; transformamos a carne em commodity, as crianças não sabem que um animal morre para gerar um bife, acham que a carne vem do mercado.

    Toda pessoa deveria caçar ou matar um frango para confrontar essa realidade. Eu fiz isso, fui caçar, trabalhei em uma linha de produção de frangos. É uma experiência emocional muito forte e esse tipo de carne eu não como mais.

    Eu defendo comer carne porque é algo que nos fez humanos, que está repleto de rituais... Mas esses não são motivos 100% adequados. Defendo seu consumo porque a agricultura verdadeiramente sustentável, em um sistema ecológico, precisa de animais para funcionar bem: plantas alimentam animais, animais alimentam a nós e –com seus dejetos– às plantas... Isso é um ciclo muito importante.

    Hoje, quando buscamos saber mais sobre de onde vem a comida, como ela foi feita, sabemos que os melhores fazendeiros dos Estados Unidos são os que fazem coisas diferentes, que liberam seu gado para comer grama e capim, adotam produções orgânicas...

    Comer menos carne, aliás, seria um dos meios de ajudar a alimentar a população mundial crescente. É só pensar que, além de desperdiçar 40% dos grãos que produzimos, usamos outros 30% para alimentar animais.

    Estímulo
    Meu livro não vai resolver todos os problemas. Não o escrevi para pessoas se sentirem culpadas, mas estimuladas.

    Estamos em uma bifurcação e sabemos aonde a industrialização da comida está nos levando –50% da população brasileira tem obesidade, há uma epidemia de diabetes... Nos EUA, gastamos US$ 1 trilhão para tratar doenças crônicas ligadas à má alimentação. Isso vai nos levar à falência, haverá um centro de diálise a cada esquina.

    Ou mudamos a forma de comer, para algo mais econômico, realista e bonito, ou estamos fadados a piorar ainda mais.

    Parece difícil mudar, mas precisamos nos lembrar que mudanças sociais acontecem –com a amamentação foi assim, com o cigarro também. Sou esperançoso.

    Crianças
    Quando se deu o feminismo, houve uma conversa tensa sobre quem devia cozinhar, se as mulheres ou os homens, e a indústria apareceu dizendo: "Parem de brigar, faremos isso por vocês". O KFC espalhou outdoors pelo país associando sua comida, o fast food, com as aspirações das mulheres. E isso funcionou, a discussão foi interrompida.

    Precisamos, agora, terminar essa discussão. A responsabilidade deve ser compartilhada entre homens, mulheres e também as crianças. Cometemos um erro grande de não levá-las para a cozinha.

    As técnicas de cozinha precisam ser ensinadas às crianças, inclusive nas escolas –como antigamente, nas aulas de economia doméstica. Cozinhar em família é prazeroso, é tempo de qualidade passado junto. Criar os filhos e não ensiná-los a cozinhar o básico é como não ensiná-los a mexer com dinheiro, não alertá-los sobre as drogas.

    Faça você mesmo
    Estamos nos tornando muito dependentes da indústria. As pessoas abrem mão de funções que elas mesmas faziam, e o sistema se mostra muito disposto a facilitar as coisas para você. Isso é debilitante.

    Você é encorajado a ter uma habilidade, usá-la para sobreviver e deixar o resto –cuidar das crianças, se alimentar, se divertir, fazer exercícios...– para o sistema.

    Precisamos voltar a cuidar de nós mesmos. Em casa, tenho uma horta. Não sou autossuficiente com ela, mas tenho orgulho em colher tomates e abobrinhas para o jantar, em saber que posso não depender desse sistema do qual parece ser impossível escapar.

    Mesmo que você não faça bem, vai saber como é feito e passar a respeitar muito mais a produção.

    Fritas
    Não tenho grandes perdições. Sou mais suscetível a coisas gordas do que a sobremesas. Adoro batatas fritas –não as do McDonald's, mas as boas.

    Minha regra com elas –e com qualquer "junk food"– é a mesma: coma o quanto quiser, desde que você a faça. Isso, nesse caso, funciona, porque é terrível fazer batatas fritas: faz bagunça, você fica com um monte de óleo e não sabe o que fazer com ele...

    Mas é importante fazer você mesmo, porque, quando é a indústria que cozinha, são usados ingredientes que humanos não têm e são grandes os riscos de não ser uma dieta saudável. A indústria usa muito mais açúcar, mais sal e mais gordura. O mesmo se dá com restaurantes.

    A indústria usa poucos ingredientes naturais e põe sabores artificiais, cores artificiais e aditivos que fazem a comida durar por meses; quando é você cozinhando, você compra os melhores ingredientes e, até por estar sem tempo, faz a receita de maneira simples e saudável.

    Comida brasileira
    Fui a uma churrascaria, no Rio, onde não se via o sujeito preparando a carne, mas os garçons vinham à mesa e cortavam fatias e mais fatias de carne. Não foi minha melhor refeição no Brasil, tive mais sorte com os peixes –comi peixes maravilhosos.

    Quero jantar no D.O.M., que é algo de que todos falam nos Estados Unidos. Mas não gosto de restaurantes chiques, minha pegada é comida tradicional.

    Então, comi moquecas deliciosas em Salvador, feijoada, muito palmito. O Brasil tem uma das grandes tradições culinárias do mundo. E o que levo daqui me abriu os olhos, vocês têm coisas maravilhosas a defender, uma tradição importante, de pratos compartilhados, como a moqueca.

    Não vou criticar nenhum prato de vocês [sobre a polêmica de Jamie Oliver com os brigadeiros], até porque não experimentei brigadeiros –sobremesa não é minha praia, e sei que suas sobremesas são muito doces. Mas posso criticar uma bebida: não a caipirinha, nem a cachaça, mas a cerveja. vocês estão fazendo cerveja com milho!

    A história do porco Kosher
    Quando eu tinha 16 anos, meu pai botou na cabeça que eu gostaria de ter um porco –eu colecionava livros e figurinhas de porcos. Um dia ele voltou do trabalho com uma caixa de sapatos com um porco de 6 semanas. Morávamos em Manhattan, eu não sabia nem se podia ter um cachorro, e tinha um porco. E meu pai sugeriu o nome Kosher –anos depois, aliás, um sujeito de barba, que se disse rabino, me disse que adorou essa história.

    E hoje as pessoas me perguntam o que eu fiz com ele, se o comi... Bem, passei o verão com ele, em uma casa de praia, e no final do verão ele estava com 70 kg, não podia voltar a Manhattan. Levei-o a uma feira estadual, de exposição de animais, e ele ganhou em sua categoria –mas só havia ele concorrendo.

    Por coincidência, o cantor James Taylor, que à época tinha 22 anos, mas já era um pop star, tinha uma porca chamada Mona, também estava na feira, e eu o conheci lá. Depois, pensei: "James Taylor é a única pessoa que conheço que também tem um porco"; dei um jeito de me encontrar com ele e combinei de doar Kosher a ele.

    Quando colocamos Kosher no cercado, na casa de James Taylor, Mona começou a persegui-lo. A princípio, achamos que seria uma disputa sadia, para marcar território ou hierarquia. Mas depois ficou alarmante. Fizemos outra cerca para Kosher e, quando fomos buscá-la de volta, ela estava ao lado de Mona, morta, provavelmente de um ataque cardíaco, por susto. James Taylor se sentiu péssimo e chegou a fazer algo heroico, uma espécie de boca a boca em Kosher –e isso na hora não foi nada engraçado.

    No final, ele não conseguiu ressuscitar Kosher. É claro que eu não podia comer meu animal de estimação –o enterramos ali mesmo com o prêmio que ela tinha ganhado na feira estadual.

    *

    POLLAN NO BRASIL

    O QUE COMEU

    • Em Paraty (RJ): bolinho de queijo defumado com paçoca de banana, bacon e geleia de pimenta-biquinho
    • Em Salvador: acarajé ("Comi puro, adorei") e moqueca ("São tantos tipos, e todos deliciosos")
    • No Rio: foi a um rodízio de carnes ("Tive mais sorte com os peixes")

    O QUE BEBEU

    • Cachaça, a bebida preferida
    • Cerveja ("Fiquei desapontado com a brasileira, é feita com milho!")
    • Suco de frutas; gostou do de papaia com laranja e do de manga; também provou um de cupuaçu em Paraty

    QUEM CONHECEU

    • O chef David Hertz, da Gastromotiva; Pollan comeu uma "peixoada" feita por um aluno da ONG no morro do Vidigal, no Rio

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