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    Viver longe da cozinha natal desenvolve engenho e paciência

    LOURDES HERNÁNDEZ
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    03/09/2014 01h30

    Quando Felipe e eu chegamos para morar em São Paulo, há 13 anos, eu achava que ia comer o mundo de uma mordida só. Queria saber tudo, o bom e o ruim sobre o Brasil, país que tinha amado apaixonadamente –como se ama aquilo que você não conhece.

    Queria ler todos os escritores, saber a história do país, a escrita e a não escrita, sem perder nenhum detalhe, decorar suas canções, me banhar em todas as suas águas, participar de todos os saraus. Estar aqui era a maior felicidade com que sempre sonhei.

    Como se isso não bastasse, a gente chegou para difundir nossa cultura e, nos primeiros três anos, trouxemos do México chillis, tequilas, mezcales, lesmas, mais chillis, canções, formigas, tortillas coloridas, a Lila Downs, chillis secos, escritores, as pinturas dos muralistas, cinema, mais cinema, nosso espanhol mexicano...

    São Paulo já era vendida como meca gastronômica. Eu acariciava, curiosa, enormes guias de lugares para comer, um mundo, reduzido a poucos bairros onde saciar minha fome; e esportivamente comecei a viagem com 18 quilos a menos.

    O engraçado foi que, querendo saber tudo sobre minha paixão brasileira, comecei a resolver dívidas que tinha com a minha própria língua e a ler receitas e a história de meu país como um cego que, de repente, recupera a visão sabendo que será apenas por um breve tempo. E eu, que nunca tinha cozinhado comida mexicana, além de alguns pratos sazonais, fiz uma viagem de volta, me olhando nessa cozinha, espelho do que somos, desde sempre.

    Um dia, feliz, encontrei no mercado uma bandeja de chilli jalapeño. Mostrei ao Felipe, que rapidamente ligou para os fazendeiros responsáveis. Pouco tempo depois estávamos na fazenda Ituaú, da família Abumussi. Nos anos seguintes, o Cyro se dedicaria a semear e a entender a dramática vida do cultivo do chilli.

    "Água só no começo, Cyro, assim que a muda vai para a terra. Tire as mordomias. Nada de estufa confortável e pauzinho aconchegante, deixa eles se esforçarem, grite com eles, maltrate... Eles precisam desenvolver armas, atiçar sua capsaicina." E o Cyro aprendeu a cantar para elas: "Ingrata, pérfida, romântica insoluta..."

    E nossos chillis cresceram teimosos e hoje temos serrano, jalapeño, um poblano ainda veleta, uma temporada cada vez maior de tomate verde e insistimos no guajillo e na jícama (conhecida na Chapada Diamantina como batata-de-água ou batata-doce). Habanero temos, mas ele apenas pica, não tem sabor. Cyro já está com as mudas de papaloquelite e o horizonte continua picante.

    Antes do Cyro, apareceram a Jerusa e o Luiz, pernambucanos, fazedores de tortillas e mais tarde de sopes e panuchos e tamales e tostadas e totopos. Se não fosse por essas vontades individuais, o mundo seria outro.

    Agradeço a Julia e a toda a empresa Jaguacy por me fornecer, atenciosa e carinhosamente, abacate hass o ano inteiro. Ela insistiu em chamá-lo em inglês: avocado (que significa abacate), para diferenciá-lo do outro. Acho que o marketing funcionou, mas nunca para a gente. Nossos abacates simplesmente se definem pelo tipo: hass, pellejo, negro, míni... E abacate vem da voz nahua, ahuacatl. Sem esses abacates, acho que teria desistido de fazer guacamole.

    Viver longe da pátria gastronômica, imaginária, herdada desenvolve o engenho e a paciência. E foram essas pessoas e outras nos mercados e nas feirinhas, a Rosinha, a Lúcia, a Aline, o Walter, o japonês de cara fechada na Ceagesp que me ajudaram a localizar ingredientes: epazote, malvón, verdolaga... Me ouviram e foram atrás de meus desejos.

    Mais uma vez constatei que nem o ócio, nem a riqueza, nem os excessos tem sido geradores da grande cozinha. Ela, quase sempre, está vinculada aos trabalhadores, aos famintos, aos que, desafiando obstáculos e convencionalismos, inventam e reinventam guisados que têm cheiro de milho tenro, de batata fumegante, do desejo intenso dum prato de arroz branco com feijão preto.

    A necessidade é uma professora exigente, exercita a imaginação e a intuição com mão severa, foge das frescuras, mas mantém essa pitada de rebeldia e essa sombra de dignidade meio abalada que ajuda sempre a encontrar um pouco de cebola, alho, tomate, coentro, salsinha e esse ar feroz da cozinha mais imediata. A que no cabe nos receituários e nas críticas gastronômicas até alguém colocar a palavra sublime ou delicada.

    A função do contador de histórias na educação é a mesma da comida no organismo: alimentar. Entrar em contato com outras culturas e com a própria, ter noção dos valores éticos e aprender sobre o mundo.

    Inevitável perceber o parentesco entre nossos pratos ibéricos (a raiz que mais homogeneíza as nossas cozinhas latino-americanas). O interessante é destacar o impacto de nossos próprios produtos levados para Espanha e Portugal e devolvidos como parte de seu imaginário gastronômico.

    Trocas e apropriações, processos que como toda circunstância simbiótica acontecem a tal nível de profundidade, que é difícil distinguir ou reconhecer a origem dos mesmos (sempre achei que Vingança fosse uma música mexicana e foi engraçado saber que Cielito Lindo é quase hino em Porto Alegre). Técnicas, produtos e linguagem se naturalizam, viram o próprio, mestiçagem do qual nenhuma sociedade saudável escapa.

    Conhecer é mudar (corromper, diriam os mais puristas), a singularidade de determinados temperos é nossa marca indelével, o patrimônio invisível, que levamos com orgulho como memória ativa, mas que pode virar fardo se deixamos ser apenas nostalgia passiva.

    A comida já foi racista, populista, xenofóbica, já nos manipulou politicamente e nos fez vítimas de especulação econômica. Hoje, com a quantidade assustadora de fotografias e textos circulantes, funciona como aqueles espelhos de circo, que em vez de nos refletir deforma nossa imagem.

    A comida virou a forma mais difundida, organizada e classista de aproveitar nosso tempo. Mas, ao mesmo tempo, é uma reserva infinita de nobreza primitiva, de coisas como as ilusões da infância, a solidariedade comunitária, a possibilidade de ser essa confraria anônima encantada pelo fogo e a panela de água fervendo que ainda acredita no herói, no mágico, no cozinheiro.

    UNA DESPENSA SIMBÓLICA

    Quiçá seja a música, entre todas as artes, a mais presente nessa viagem até o outro, daí sua forte descarga comestível. Só para finalizar quero lembrar duma música de Carlos Vives, "Décimas del Parecido" (do assemelhado), na qual o tema recorrente é manter, a todo momento e em qualquer circunstância geográfica, a promessa de enlace aos assemelhados.

    Es un hombre preparado
    de paciencia y buena fe
    que le enseña a los pelaos
    del pueblo de Magangué.

    Es un hombre preparado
    todo el mundo ha recorrido
    y todo lo que conoce
    le resulta parecido.

    Si ustedes prestan atención
    y analizan bien
    se darán cuenta
    que todos somos parecidos
    que un loro
    se parece a una guacamaya
    que una iguana
    se parece a un dinosaurio
    que está canción
    se parece a mi barrio
    los Arhuacos a los Mayas
    un caribeño a un canario
    un tabaco a una calilla
    un caimán a una babilla
    mi sueño a Punta Betín.

    Y la ciudad de Neworlín
    se parece a Barranquilla

    Lourdes Hernández é cozinheira mexicana e volta a seu país natal após morar 13 anos em São Paulo.

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