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    Leia relato de um almoço no Central, o melhor restaurante da América Latina

    LUIZA FECAROTTA
    ENVIADA ESPECIAL A LIMA

    10/09/2014 02h00

    Lima. Peru. Saltei do táxi (aqueles táxis de banco surrado, porta emperrada, cujos motoristas buzinam à exaustão). Estava diante do Central, o restaurante que foi eleito na quarta passada (3) o melhor da América Latina pela revista inglesa "Restaurant".

    PRIMEIRO ATO

    São 12h28. A porta da casa, em uma rua residencial de Miraflores, um dos bairros mais nobres da cidade, está fechada. Mais quatro ou cinco pessoas se aglomeram ali.

    Espio pela fresta: equipe reunida e, segundos depois, entes eles, batem palmas.

    Abre-se a porta. Estou só.

    SEGUNDO ATO

    Olho a mesa que mais cobiço e é nela que uma garota me acomoda. Está colada numa parede de vidro, de pé-direito alto –o salão é clean, iluminado, com mesas largas e cadeiras confortáveis.

    Do lado de lá do vidro, está a cozinha, orquestrada pelo casal de jovens (e belos) chefs, Virgilio Martinéz e Pía León. Andei lendo sobre eles. Descobri, por exemplo, que ele já foi skatista, só "tem tempo para almoçar em pé" e cria na madrugada. Que ela já saiu chorando da cozinha umas boas vezes e não compreendeu por que dois clientes, em uma só noite, não comiam coentro nem bebiam álcool.

    TERCEIRO ATO

    Virgilio se aproxima da mesa, com o tronco baixo, em minha direção: "Esse menu é uma expedição pelas alturas, pela biodiversidade do Peru." E deixou sobre a mesa um menu de 17 tempos, cada qual com a altitude a que fazia referência.

    E eu curiosa para saber o que diabos aquele rapaz, que se dividia entre o salão e a cozinha, frenético, fizera para ultrapassar na lista o Astrid y Gastón –casa do chef mais influente da América Latina, o peruano Gastón Acurio.

    QUARTO ATO

    Virgilio coloca duas peças diante de mim. Uma pedra na qual estava apoiado um crocante finíssimo com carne, fígado e pele de peixe, com gotículas espalhadas milimetricamente. Ao lado, um copinho sobre um pedaço de madeira, que continha um caldo de pescado e cacto, com pétalas comestíveis colhidas há pouco ali na horta.

    Nenhum prato chega em louças regulares, com as quais estamos acostumados. São pedras, argilas, lascas de madeira a amparar, de maneira artística aquelas receitas.

    (PEQUENA PAUSA)

    Lembrei de uma cena de "Cozinha - Uma Questão de Amor, Arte e Técnica", de Hervé This e Pierre Gagnaire: "Nosso prazer de hoje, com estas codornas, não é menos elevado nem mais vulgar que a sensação buscada ao contemplar um quadro ou ouvir uma bela música."

    QUINTO ATO

    Atenta ao silêncio (e à cordialidade) do serviço. Gratíssima pela paciência dos garçons, que se puseram a repetir alguns nomes de ingredientes peruanos (tumbo, ungurahui, zapallo loche).

    Eis que chega à mesa a "pesca de 10 milhas", com lula e barquillo (um molusco de tom avermelhado) sob minifolhas de sabor cítrico.

    Em seguida, yacón (tubérculo adocicado) combinado com achiote (urucum) e fígado de pato amazônico.

    Como se come isso? "Con las manos."

    SEXTO ATO

    Dou um gole d'água. Mais tarde, quando fui conhecer as entranhas do restaurante, soube que a água servida passava por um processo de purificação ali mesmo, em uma sala isolada, por meio de um equipamento "high-tech".

    SÉTIMO ATO

    O serviço corre com ritmo. É servida, então, uma sequência de quatro pratos:

    – Moluscos (almejas) envoltos em um creme de limão;

    – Vieiras com caldo de peixe acidulado com tumbo (fruto semelhante ao maracujá) e zapallo loche (abóbora alaranjada pequena e gorda);

    – Delicados pedaços de abacate sob uma lâmina fina da semente do mesmo fruto, envolto em um molho verde, feita da folha da planta;

    – Polvo no carvão com emulsão de airampo (fruto avermelhado que se presta a colorir alguns pratos). Em um copinho, o caldo no qual o polvo foi cozido, para beber entre uma garfada e outra.

    OITAVO ATO

    Carne de boi das cordilheiras. A garçonete traz à mesa, em um prato à parte, um coração de boi desidratado. Sobre a receita, com molho denso da própria carne, ela rala o coração, como queijo.

    NONO ATO

    Sobremesas que exibem cacau, café, chirimoya (fruto de polpa doce e carnuda).

    Uma volta guiada pela cozinha, pelos laboratórios (com livros aos montes e ingredientes à vista, garimpados por um grupo interdisciplinar que se presta a explorar, registrar e conhecer produtos) e pela horta.

    DÉCIMO ATO

    A conta (US$ 150, sem bebidas alcoólicas), com a satisfação de entender por que aquele é o melhor restaurante da América Latina.

    CENTRAL
    Endereço Ca. Santa Isabel 376, Miraflores, Lima - Perú
    Site centralrestaurante.com.pe/

    *

    CENTRAL JÁ HAVIA TIDO DESTAQUE EM LISTA MUNDIAL

    A edição deste ano foi a segunda do prêmio para os 50 melhores restaurantes da América Latina. A lista é organizada pela revista britânica "Restaurant", aos moldes da premiação mundial.

    Esta foi também a segunda vez que uma casa peruana liderou o ranking: o Central assumiu o posto que era do Astrid y Gastón (segundo colocado neste ano).

    Em 2013, o restaurante havia ficado na quarta posição –superou também o mexicano Pujol e o paulistano D.O.M., que caiu do segundo para o terceiro lugar.

    O Central já tinha chamado a atenção na lista mundial da "Restaurant". Ele entrou para o ranking em 50º (em 2013) e saltou para 15º no prêmio divulgado em abril deste ano.

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