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    Por que diabos o povão não pode comer feijão tropeiro nos estádios?

    CARLOS ALBERTO DÓRIA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    07/11/2014 12h00

    De repente, tudo é ilícito. Até o feijão tropeiro. Ao menos parece que é o que pensa a Prefeitura de Belo Horizonte, que quer fazer uma licitação (tornar lícito, portanto) a presença de vendedores ambulantes que vendem o chamado "tropeirão" nos portões do Mineirão.

    Uma delícia! Feijão, farinha de milho ou de mandioca, linguiças, toucinho ou variações em torno disso. Os tropeiros levavam o trem de cozinha e, "onde quiser pernoitar, mandavam a sua gente preparar a carne-seca e o feijão. Estes são os comestíveis quotidianos e, em vez de pão, usa-se no Brasil de farinha de mandioca [...] exceto no planalto e em toda Minas Gerais, onde se usa da farinha de milho." Assim vai surgindo o feijão tropeiro nos "pousos" onde a tropa descansa, como atesta G. Wilheim Freiryss em 1814 (Viagem ao Interior do Brasil).

    Pois o feijão desses desbravadores foi o que durou no tempo e chegou ao Mineirão e querem tirar de lá. Mais de 13 mil assinaturas na internet apoiam os barraqueiros, argumentando que são "patrimônio histórico e cultural" de Belo Horizonte. Sem os tropeiros, nem Minas nem São Paulo existiriam. Devemos a vida a eles!

    Maria do Carmo/Folhapress
    Feijão tropeiro com porção de mandioca, do restaurante Consulado Mineiro, em São Paulo
    Feijão tropeiro com porção de mandioca, do restaurante Consulado Mineiro, em São Paulo

    E coisas semelhantes ocorreram em Salvador e no Recife, com as tapioqueiras e as baianas do acarajé, por causa da Copa. Em Minas também teve a ver com a reforma do Mineirão, o afastamento dos barraqueiros do feijão tropeiro.

    O povão, sabemos, come arroz, feijão, tapioca, carne-seca, acarajé e outras coisas assim. Só pode comer onde vai, não em restaurantes ou food trucks. O futebol também é costume do povão. Por que diabos então não pode continuar comendo o que gosta nos estádios? É mais do que lícito! Então, não tem que licitar.

    Tropeiro, tropas de muar perambulando Brasil adentro, é o que nos forma, mais que carro ou bicicleta. Patrimônio histórico não é morto-vivo, assombração estatal, coisa que não vale mais. Não. É coisa fumegante, ali onde o povo está. Licitar é estatizar o bem público para redistribui-lo segundo critérios que só Deus sabe. Há tanto ilícito por ai, não é? E essa energia toda contra a comida tradicional do povão...

    A moda do food truck deixou os burocratas com a boca torta. Querem embelezar o popular; qualquer brecha, e pronto! Lá vem as novas normas –em geral, impossíveis de cumprir pelos que tradicionalmente prestavam o serviço de comida de rua.

    Mas "a praça é do povo. Como o céu é do condor", já dizia Castro Alves. Um pouco mais de poesia não faz mal a ninguém.

    CARLOS ALBERTO DÓRIA é sociólogo, autor de livros como "Formação da Culinária Brasileira" (editora Três Estrelas)

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