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    Restaurantes clandestinos crescem na Venezuela

    DA REUTERS

    25/06/2015 00h02

    Siga pela via principal, conte três semáforos, e pegue a terceira rua à esquerda. Ali, você vai encontrar uma guarita.

    "É uma casa azul e branca, a entrada é pelo estacionamento", acrescentavam as instruções por e-mail. "Não diga aos guardas que você está indo ao Ciboulette Prive, e sim que veio para uma visita pessoal."

    Assim como os restaurantes "de sala de estar" que prosperaram em Havana nos anos 1990 depois da queda dos soviéticos, Caracas está vivendo uma ascensão de estabelecimentos clandestinos. Para sobreviver à crise econômica, à corrupção e à violência, atualmente restaurateurs criativos têm buscado outras saídas.

    Chefs e proprietários dizem que operar um restaurante de modo rentável tem se tornado algo cada vez mais problemático. O governo limita o aumento dos preços, apesar da alta inflação, e o suborno se torna a única maneira de obter licenças rapidamente.

    Além disso, enquanto a violência faz com que os clientes procurem locais cada vez mais privados e seguros, a escassez de alimentos torna a missão de manter um menu estável ainda mais difícil.

    Jantares privados dão aos chefs, portanto, muito mais flexibilidade –e, principalmente, menos vigilância.

    "Ninguém sabe onde estamos até que a gente conte. É um restaurante ilegal", reconhece Ana, chef do Ciboulette Prive, ou "Cebolinha Privada" em português, sentada no quintal de sua prima, em uma bairro chique de Caracas. Ela pediu que seu sobrenome não fosse publicado por medo de sofrer represálias.

    Elegantemente decorado, o Ciboulette Prive, que abriu as portas em outubro, serve 16 pessoas debaixo de uma grande árvore, com obras de arte retrô na parede do jardim e discos de vinil "vintages" substituindo jogos americanos.

    Eles cobram 3.000 bolívares por pessoa. O valor é equivalente a cerca de US$ 7 (R$ 21) na taxa de câmbio do mercado negro ou US$ 475 (R$ 1.425) no câmbio oficial da Venezuela.

    O preço significa quase duas semanas de trabalho, considerando-se o salário mínimo do país. Ou seja, fora do alcance de venezuelanos que não têm acesso ao dólar, para quem uma simples refeição fora de casa é uma lembrança distante.

    Agora, ao invés disso, muitos passam horas em filas debaixo do sol caribenho por itens básicos como farinha, frango ou leite.

    A inflação come o valor do dinheiro que ganham, deixando poucos recursos para noitadas, e muito menos grandes compras ou viagens.

    "A Venezuela deve ser um dos lugares mais difíceis para a gastronomia", diz o dono do Ciboulette Prive, Emiliano, 21, que estuda administração na Universidade Metropolitana de Caracas. Eles também pediu que seu sobrenome não fosse publicado.

    Cerca de meia dúzia de pequenos restaurantes ilegais surgiu pela cidade no último ano, divulgados principalmente pelo boca a boca, por telefone e pelas mídias sociais.

    Eles estão se tornando populares entre venezuelanos com melhores condições financeiras e estrangeiros, que estão interessados em provar novos sabores, mergulhar nas últimas tendências ou escapar do circuito conhecido de restaurantes de alto padrão.

    "Os chefs normalmente assumem mais riscos, então você come mousses mais sofisticados, carnes longamente refogadas e frutas e legumes que são raros de achar", diz um diplomata ocidental que costuma frequentar restaurantes ilegais e pediu para não ser identificado.

    As autoridades venezuelanas não responderam aos pedidos de resposta. Chefs e proprietários, no entanto, dizem que funcionários do governo costumam aceitar seus estabelecimentos –e às vezes até comem neles.

    'SOU UM CONTRABANDISTA'

    Para fazer o estoque do Ciboulette Prive, Emiliano passa horas visitando lojas e fornecedores, devido à escassez generalizada que assola a Venezuela, que vem enfrentando recessão nos últimos dois anos.

    Dias atrás, ele pagou 1.660 bolívares no quilo da carne, que há seis meses, custava 600. Esse tipo de aumento é comum na Venezuela, onde a inflação anual oficial foi de 69% no ano passado e estima-se que está caminhando para o triplo disso em 2015.

    Os clientes venezuelanos estão acostumados a ver os cardápios cobertos de rabiscos –já que os preços são atualizados frequentemente– ou a perguntar para o garçom o que eles realmente têm antes de olhar o menu.

    Alguns dos estabelecimentos locais cobram em dólares americanos, o que é contra a lei. Eles estão seguindo uma tendência: a moeda estrangeira –ou seu equivalente no mercado negro– configura cada vez mais a base das transações.

    Em Los Chorros, um bairro chique aos pés da montanha Ávila, Eduardo Moreno, 53, toca o La Isabela. Ele é o pai da cozinha clandestina na Venezuela.

    "Nove anos atrás, eu percebi que a situação pioraria drasticamente", disse ele, sentado no terraço repleto de plantas tropicais de sua casa estilo colonial que também funciona como restaurante.

    Moreno cobra U$ 55 (R$ 215) por pessoa, preferencialmente pagos por transferências bancárias internacionais. Dado o clima atual da Venezuela, esse número é dolorosamente caro para quem não ganha em moeda estrangeira. É o equivalente a três meses de trabalho para quem recebe o salário mínimo.

    Moreno manda seu cardápio por e-mail toda semana a um grupo de frequentadores. A comida que oferece é mais exótica do que a de muitos restaurantes venezuelanos, porque ele faz questão de sair do país de tempos em tempos.

    "Eu volto para a Venezuela com contrabando", diz ele com um sorriso. "Sou um contrabandista. Eu trago comida do resto do mundo, da Índia, França, Indonésia, Espanha... Basmati de grãos longos, basmati de grãos curtos, foie gras."

    Muitos dos restaurateurs prefeririam tocar estabelecimentos legalmente, embora achem o clima econômico do país sufocante demais. "Você não consegue ser legalizado em um país onde tudo é ilegal", diz Moreno.

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