• Comida

    Sunday, 05-May-2024 06:47:09 -03

    Restaurante em que só se come sem companhia questiona 'overdose social'

    LUISA BELCHIOR MOSKOVICS
    ENVIADA ESPECIAL A AMSTERDÃ

    20/08/2015 02h00

    Comer, defende o autor e ativista gastronômico norte-americano Michael Pollan, é um ato social. É mesmo?

    A questão rondava a cabeça da designer holandesa Marina van Goor, que achava que a socialização em torno da comida havia se banalizado.
    Ela levou então a questão para seu escritório de design, especializado em encontrar novos formatos e modelos para produtos comuns, como pode ser um restaurante.

    O resultado se materializou no Eenmaal, que reivindica ser a primeira rede de restaurantes com mesas apenas para uma pessoa.

    A casa abriu suas portas em meados do ano passado em Amsterdã no formato "pop-up" –locais abertos apenas um determinado período de tempo–e já passou pela Antuérpia, Nova York, Londres e irá à China e ao Japão.

    A Folha visitou a pop-up da capital holandesa em sua última abertura, no fim de novembro. E descobriu que a experiência pode acabar sendo mais social do que se imagina.

    Aliás, embora o lema da rede seja "chegar sozinho, sentar-se sozinho e comer sozinho", não há nada ali contra a socialização, segundo frisou Marina van Goor.

    "Sair para comer sozinho é visto hoje como algo estranho e constrangedor, especialmente no jantar, que é a máxima experiência social por excelência", disse. "Há uma overdose social. Temos que estar rodeados de pessoas o tempo inteiro hiperconectados, então queremos mostrar que não há problema em sair para comer sozinho."

    A reportagem e mais cerca de 30 de comensais foram os convidados para provar o primeiro menu da sexta edição do pop-up em Amsterdã, montado por três dias em um estúdio de trabalho no Herengracth, um dos canais mais badalados da capital holandesa.

    O cardápio do restaurante é único: um menu simples e sem firulas (embora com toques de humor) e composto por entrada, prato principal, sobremesa e bebida a um preço fixo de € 35 (cerca de R$ 130).

    Atravessada a galeria de arte situada no primeiro andar do local, chega-se ao restaurante em si, que é na verdade uma série de micro-mesas acessíveis apenas pelas escadas finas e ingrimes típicas das casas do centro de Amsterdã.

    Sentados, os comensais iniciavam suas experiências individuais.

    A maioria deles olhava a vista do canal pela janela enquanto devorava, literalmente, o cardápio, escrito em um papel comestível com queijo holandês curado e ralado em cima.

    No segundo andar, um cliente registrava tudo com uma câmera GoPro posicionada atrás de si mesmo. Mais um lance de escada e uma surpresa: duas pessoas conversavam. Mas o papo durou menos de 5 minutos, e ambos logo voltaram a seus universos particulares, objetivo do almoço: ele compenetrado no prato, ela variando a vista entre um livro e a janela.

    Para evitar que os comensais desviem a atenção de si mesmos, toda a proposta do restaurante, menu incluído, é simples e limpa –exceto pela falta de guardanapo, estrategicamente ausente, para, segundo van Goor, não "sujar" o conceito minimalista das mesas.

    A casa também não serve pão, sem o qual europeus não costumam passar uma refeição.

    Sobre uma mesa preta e quadrada de pouco mais de 40 centímetros de largura, o suficiente para encaixar as pernas, havia apenas um garfo e uma faca, uma taça de vinho, nenhum guardanapo e um prato com um desenho de brochete de linguiças, com o menu comestível e um bloody mary.

    Menu e drinque devorados, garçonetes despojadas traziam o primeiro prato: homus com quinua, cenoura glaceada, beterraba e cebola com flores comestíveis e arroz selvagem canadense em um formato que propositalmente lembrava o de minhocas.

    "Nossa ideia é conectar completamente os clientes com a comida, e para isso tentamos atiçar a curiosidade deles com essas pequenas brincadeiras", explicou a chef Emmy Ronken, responsável pelo menu.

    Entre um prato e outro, outros dois comensais também trocam palavras, ainda que cordiais.

    "É a primeira vez que você vem?", perguntou um deles. "Sim, aproveite seu almoço", respondeu a outra.

    Ao final da refeição, no entanto, os dois acabaram em um bate-papo em um dos sofás da casa, mas aprovaram a experiência.

    "É como uma meditação", definiu o chef holandês Aaron Van Henegowven, que pensa em abrir o próprio restaurante também com mesas apenas para um. "Sua atenção é toda para você e para a comida, não é preciso falar nem ouvir nada".

    O serviço, também propositalmente, é bem informal e, pasme, social. Batucando talheres na mão, garçons de tênis batiam papo com comensais, desde que estes buscassem a conversa.

    A decoração, a cargo da galeria de arte do espaço, era composta por armários pequenos com chaves gigantes, tapetes, o nome do restaurante projetado na parede e um quadro de arte urbana. Duas poltronas com revistas davam apoio às micro-mesas. Entre um prato e outro, alguns clientes sentaram-se nelas para ler.

    O peixe, prato principal, veio com a pele dourada, mas com um cozimento leve. Sob ele, tomates-cereja e aipos grelhados com azeite de oliva, cuja crocância interrompia o silêncio nas salas de serviço.

    No dia da estreia, o silêncio também foi interrompido pelo ruído de comensais que bebiam champanhe no mezanino. E, claro, acabaram conversando entre si.

    Segundo a idealizadora, foi um dia incomum.

    Para levar a atenção dos clientes de volta à comida, chegou a sobremesa, com pedaços de pêssegos assados com mel e nozes em diferentes texturas e rum secretamente camuflado em um formato sólido similar ao de passas.

    "Isso nos deixa realmente atentos ao que estamos vendo, cheirando, provando e comendo", afirmou a chef Emmy Ronken. "Quando as pessoas estão sozinhas e desconectadas, elas ficam muito mais aptas a usar todos os sentidos, e acho que com isso o ato de comer passa a ser uma experiência totalmente nova".

    E até mesmo social.

    Os idealizadores do projeto informaram nesta quarta (19), que estão elaborando um livreto do Eenmaal e, por enquanto, não há agenda com novas edições de jantares.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024