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    Para manter público, livros de receitas mudam, ganham prosa e viram até HQ

    KIM SEVERSON
    DO "NEW YORK TIMES"

    25/10/2015 03h00

    Tony Cenicola - 9.out.2015/'The New York Times'
     Some cookbooks, in New York, Oct. 9, 2015. The bedrock of how we cook and share food has changed, as instructions have shifted away from formulas toward deeper dives into technique.(Tony Cenicola/The New York Times) - XNYT20
    Livros de receita tradicionais e até em versões com histórias em quadrinhos

    Em um mundo onde tudo –de uma ida ao aeroporto até a forma como uma criança aprende matemática– mudou, a receita por escrito, aquela pedra fundamental de como cozinhamos e compartilhamos as refeições, está passando por sua transformação.

    Assim como aconteceu com os meios de comunicação e com a indústria da música, a receita está se ampliando e sofrendo abalos, suas convenções estão sendo desafiadas por uma geração que aprendeu a cozinhar com chefs de televisão e vídeos do YouTube.

    Sites como o Allrecipes.com, com mais de meio milhão de participações de usuários e seu ethos de classificar receitas públicas, democratizaram os modos de preparo. Os blogueiros de comida desmistificaram isso. Na era da instrução como uma commodity, fazer uma omelete em um saco plástico pode se tornar uma sensação da noite para o dia.

    "Uma das melhores coisas em relação às receitas hoje é que você pode obter grande quantidade de conhecimento, o que permite avançar em várias direções", diz J. Kenji López-Alt, veterano na "Cook's Illustrated" e colunista da Serious Eats, cujo livro de 950 páginas "The Lab Food: Better Home Cooking Through Cience" (a comida de laboratório: uma melhor culinária doméstica através da ciência) está vendendo como pão quente.

    Houve uma época em que a receita de um bolo se aprendia ao lado da avó e era codificada em uma folha amarelada com o passo a passo ou em um livro de páginas manchadas. Era um caminho simples: ingredientes, modo de fazer e talvez uma dica ou duas rabiscadas nas margens.

    Agora, você pode aprender a fazer um bolo em uma publicação de histórias em quadrinhos ou depois de mergulhar fundo em um manifesto sobre a fermentação. Você pode optar pelos complexos toques de um padeiro de Nova York ou pelos toques simples de uma mulher em uma fazenda de gado em Oklahoma.

    A mudança pode parecer sutil para alguém que raramente pega numa panela, mas os editores, cozinheiros profissionais, livreiros e outros dizem que as receitas se tornaram mais abertas e amplas em sua abordagem. Os modos de fazer se afastaram das fórmulas para se tornarem explicações técnicas mais profundas, que oferecem contexto e lirismo de uma maneira que a célebre cozinheira Fannie Farmer (1857-1915) não poderia ter imaginado.

    As melhores receitas ainda põem a mesa, mas elas também ensinam o leitor a ser um cozinheiro mais intuitivo, uma mudança cultural que reflete uma nação que está cozinhando melhor do que nunca em várias décadas.

    "Em média, as pessoas são muito melhores cozinheiras e são muito mais sofisticadas do que eram antes", diz Wylie Dufresne, chef de Nova York que, com o autor nova-iorquino Peter Meehan, está escrevendo um livro detalhista de receitas, baseado no seu restaurante, WD-50, cujas atividades se encerraram em novembro passado. "Elas merecem saber não só como, mas por quê."

    Em outros rincões, a receita está sendo destruída por completo. Receitas sem receita, em que imagens ou aparições curtas de texto são usadas para descrever como montar um prato, estão em voga em publicações massivas como "Every Day with Rachael Ray" (todos os dias com Rachael Ray) e plataformas de cozinha mais especializadas, como a Food52.

    As receitas também estão se nutrindo de romances, com uma engenhosa prosa embutida em seus passos a passos. Elas estão sendo transformadas em novelas gráficas, uma abordagem pioneira de Amanda Cohen, que em 2012 publicou "Dirt Candy: A Cookbook: Flavor-Forward Food from the Upstart New York City Vegetarian Restaurant" (doces de sujeira: um livro de receitas: comida de sabor avançado do insolente restaurante vegetariano de Nova York).

    "Queríamos que nossas receitas tivessem um formato mais livre para fazer as pessoas pensarem", disse Cohen. "As pessoas podem aprender a cozinhar na internet. Elas podem ver um vídeo. Há 10 milhões de fotos on-line da nossa torta de tomate. Você não precisa ter isso em um livro."

    Essa nova forma de pensar não é uma erosão das normas; para as editoras tradicionais, a importância de uma receita bem testada cresceu. Mas os editores dizem que a forma do material tem que mudar para combinar com uma geração de cozinheiros que precisa de menos orientações e ter acesso a melhores ingredientes.

    "Sinto que 95% do tempo estou instruindo os editores de texto a não seguir o guia de estilo e deixar um pouco de espaço, deixar uma incerteza no método, para que as pessoas descubram como cozinhar", disse Jenny Wapner, editora executiva da Ten Speed Press, que no próximo ano vai publicar uma história em quadrinhos coreana com receitas do cartunista Robin Ha.

    A mudança não é muito diferente das que ocorrem quanto à forma como as crianças estão aprendendo matemática, segundo Jordana Rothman, cujo livro "Tacos: Recipes and Provocations" (tacos: receitas e provocações), com o chef Alex Stupak, acaba de ser lançado pela Clarkson Potter. Os professores de matemática estão sendo incentivados a abandonar a rotina de memorização das tabuadas em favor de métodos de ensino que enfatizam a flexibilidade e a funcionalidade. Com as receitas acontece a mesma coisa.

    "Como cultura, estamos muito mais interessados em como e por que as coisas estão acontecendo", diz Rothman. "As pessoas querem um mapa do caminho, mas não querem que você as leve até lá."

    Embora muitos chefs possam se assustar só de pensar nisso, a gastronomia na televisão teve um efeito profundo sobre a forma como as pessoas esperam que as instruções de cozinha sejam mostradas. Um livro sem dicas de cozinha inteligentes parece oco. O ponto de vista pessoal precisa estar em todas as partes, e não apenas na introdução.

    Celia Sack, proprietária da Omnivore Books, em San Francisco, observou o progresso. "A escrita de receitas está ficando cada vez melhor", afirma. "Não acho que antes elas eram tão completas como agora."

    Ela usa receitas de peixe para traçar esse percurso.

    O clássico presente de casamento, o livro "Joy of Cooking" (prazer de cozinhar), mostrava aos cozinheiros um estilo de economia doméstica por meio de uma lista abrangente de receitas para filés de peixe acompanhados de manteiga, creme, limão e salsinha. Ele deu lugar a livros como "The Silver Palate Cookbook" (o livro de receitas do sabor refinado), que tinha um toque mais pessoal e complexidade global nos ingredientes. Depois veio "The Zuni Cafe Cookbook" (o livro de receitas do Zuni Café), no qual Judy Rodgers escrevia cuidadosamente sobre como e quando colocar sal no peixe e como conseguir um caldo perfeito com a proteína dos ossos dos peixes.

    "Agora, existem todos esses livros que dizem como adequar a receita de peixe a um estilo de vida", diz Sack.

    À medida que personalidades do canal de TV Food Network, estrelas da música country e atores inundam a área com livros superficiais cheios de receitas simples, o cozinheiro que consegue escrever com uma certa complexidade literária vai se tornando um tesouro.

    "Estou trabalhando com chefs que são bons escritores de verdade, então a história não só é muito interessante por causa do conteúdo, também é um verdadeiro prazer lê-los", afirma Emilia Terragni, editora da Phaidon, que lançou neste mês "The Nordic Cookbook" (o livro de receitas nórdico), com 700 receitas do chef sueco e escritor Magnus Nilsson.

    Outros escritores de receitas estão mergulhando na ciência e na técnica, e sabem que seus leitores vão acompanhar suas receitas com rápidas olhadas na internet em busca de vídeos sobre como trançar uma challah ou de imagens do frango kung pao tal como ele é servido em um restaurante na China.

    Dorie Greenspan, que escreveu seu primeiro livro de receitas há 25 anos e em 1993 escreveu "Baking with Julia" (assando com Julia), baseado em um dos programas televisivos infantis, recebeu recentemente alguns jovens fotógrafos na sua casa para que trabalhassem em "Dorie's Cookies" (os cookies de Dorie), que sai no próximo ano. Eles examinaram suas estantes repletas de livros de Marcella Hazan, Edna Lewis e Craig Claiborne. São livros que ensinaram toda uma geração a cozinhar.

    "Eles ficaram impressionados com o fato de não haver nenhuma foto em nenhum desses livros", ela disse. "Nós aprendemos a cozinhar com as palavras e com a nossa própria curiosidade."

    Ela ainda escreve todas as suas receitas presumindo que o cozinheiro não terá nenhuma outra informação e de forma encorajadora, antecipando qualquer armadilha.

    Há aqueles, também, que resistem às receitas inconclusivas. O chef Jacques Pépin é um deles. "A receita para mim tem que ser exata, útil e utilizável", disse ele.

    O novo livro de Pépin, "Heart & Soul in the Kitchen" (coração & alma na cozinha), é uma compilação dos pratos que ele cozinha com maior frequência em casa. Ele insiste que os cozinheiros domésticos façam uma receita pelo menos uma vez e, de preferência, duas vezes exatamente como ela está escrita. Pela terceira vez, eles a entendem o suficiente para improvisar.

    Chris Kimball, fundador da revista "Cook's Illustrated" e da franquia televisiva "America's Test Kitchen", defende que no bazar cacofônico da escrita de receitas dos dias atuais, os cozinheiros vão acabar voltando para o que é direto e bem testado.

    "O que é mais importante deve permanecer como o mais importante e depurado, útil e claro", disse Kimball. "Não acho que as pessoas queiram ler 400 palavras para fazer ovos mexidos."

    Tradução de DENISE MOTA

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