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    Nina Horta lança coletânea de crônicas de comida, com intensidade e humor

    LUIZA FECAROTTA
    CRÍTICA DA FOLHA

    28/10/2015 03h00

    Nina Horta, se pudesse escolher, morreria por um torresmo de Sueli. Sueli era a menina de cento e tantos quilos que trabalhava em seu bufê a sacudir as banhas firmes, a mais sexy das cozinheiras.

    O torresmo, pois, era daqueles que desmancham na boca. "Não é modo de dizer. Se desmancha como o algodão-doce se desmancha."

    Esse passeio pelas "histórias das pequenas coisas" -e por que não pelos cinco sentidos?- pode ser trilhado nas páginas do recém-lançado "O Frango Ensopado da Minha Mãe", nova coletânea de crônicas de comida publicadas por ela na Folha.

    O mesmo tom se desdobra na conversa mansa de Nina, esparramada ao longo de uma tarde em sua casa, abarrotada de livros e louças.

    Em seus escritos surgem chefs franceses a apertar bifes com o dedo para ver se estão no ponto, o cheiro do tomate pisado no jardim, a jaca, essa "orquídea das frutas", o molho de tomate "daqueles antigos, meio adocicado, com uma suspeita de canela e uma pimenta boa para avivar os sabores".

    E suas onomatopeias todas. Os gafanhotos caramelados, croc croc; o tlim-tlim da louça; um banho de banheira para que, de repente, ploft, saia um assunto para escrever.

    Nina Horta, que outrora nos ensinou que a "comida de alma é aquela que consola, que escorre garganta abaixo quase sem precisar ser mastigada, na hora de dor, de depressão, de tristeza pequena", agora nos empresta mais uma dose de sabedoria e de bonitezas e de referências.

    "Ler receita é o de menos. Se você ler um livro de arte, na hora de preparar um prato, sem querer, lá no fundo, tem um Van Gogh, um Matisse dando uma mãozinha."

    Bem, ela já cozinhou para Chico Buarque, "que chegou muito atrasado", para o ex-presidente Lula, "que fez tudo certo, chegou na hora, cumprimentou todo mundo na cozinha, português ótimo". E até para uma certa mulher, "que era a melhor maquiadora de São Paulo, mas não sabia nem que existia um tomatinho menor que o outro".

    ROÇA

    Essa cronista, que esconde o nome e a idade, é uma mineira de 12 dias, que abriu os olhos no Rio e cresceu em São Paulo. Comia o quanto aguentava e tinha "indigestões homéricas". Passou a infância a visitar a avó em uma fazenda, "não essas fazendas com piscina, fazenda mesmo, de plantação de cana, galinha pondo ovo, peixe pescado".

    Mais tarde, passou a ir com os filhos ao sítio de Paraty -e ali comiam cuscuz com café e biju pelas manhãs.

    Escreveu pela primeira vez na Folha em 1987 e tocou o bufê Ginger por quase 30 anos, das manhãs às madrugadas. Acha a velhice uma chatura e, apesar de ter saudade do poeta Donizete, com quem trocava e-mails, não ficou muito triste com a morte recente da última de suas duas galinhas, "tão comoventes na sua pequena burrice".

    Eis uma escritora e cozinheira que toma Coca-Cola geladíssima e chama de bom fogão aquele com o qual "se pode perder a paciência e fechar o forno com o pé por estar com o frango assado nas mãos".

    "Não sou tão jeitosa para comida. Demorei 20 anos para conseguir ir ao mercado sem levar por escrito a comida que eu queria." Aprendeu ainda que "cozinheira não é quem faz um suflê maravilhoso, é aquela que sabe o que fazer para o jantar. Só".

    ETERNO

    Nina Horta não gosta da estética das grandes festas, nem de salto alto, "aquela tortura inventada pelo diabo". Tampouco gosta de bife de fígado e de óleo de fígado de bacalhau, "desse tipo de coisa ninguém gosta".

    Não filosofa sobre a comida quando está com fome e prefere não acordar cedo.

    Gosta mais de comida do que de flor. "A beleza das flores é gratuita, a comida é uma coisa útil." Também é amante de coisas e prefere o serviço do salão à cozinha. "Primeiro, você procura a louça, depois, pensa na comida."

    Bem, essa senhora das coisas e das palavras interessou-se por comida antes para comer e depois para agradar aos outros. "Você pode viver sem sexo. Sem amor já acho mais complicado. Mas sem comida mata, né?"

    Certo dia, Nina foi ter com os estudos do cérebro e aprendeu que este órgão "não distingue entre a leitura de uma experiência e a experiência em si, na vida real".

    É como se "O Frango Ensopado da Minha Mãe" fosse uma porta mágica para as mais divertidas e tristes e intensas histórias dos sentidos.

    "O que a memória ama fica eterno", disse Adélia Prado, a escritora que, vira e mexe, Nina nos ensina a ler.

    O Frango Ensopado da Minha Mãe
    Nina Horta
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    Para Rubem Alves (1933-2014), essa foi a melhor psicologia que já leu sobre a memória, e ele registrou: "O amor não suporta a perda. E uma forma de não perder é transformar a experiência que não existe mais em literatura".

    *

    O FRANGO ENSOPADO DA MINHA MÃE
    AUTORA Nina Horta
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 44,90 (288 págs.)

    Edição impressa

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