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    crítica

    Jefferson Rueda choca e atrai n'A Casa do Porco, no centro de SP

    LUIZA FECAROTTA
    CRÍTICA DA FOLHA

    27/01/2016 02h00

    Porco, esse poema, escreveu Nina Horta. "Essa obra de arte inventada por um deus guloso, uma divina construção, um clássico, um único."

    Eis o objeto de desejo de Jefferson Rueda, que surge explorado em açougue próprio "do focinho ao rabo" (o velho clichê) n'A Casa do Porco, há três meses no centro.

    Mas, ora, ora, não é clichê o aproveitamento que Rueda é capaz de fazer do bicho em apresentações sensuais, desdobrando-o em receitas diversas, que passeiam pelo mundo sem que soem repetitivas.

    Come-se porco do começo ao fim da refeição sem marasmo, sem mesmice. Fica explícito no cardápio de Rueda, prestes a completar 20 anos de carreira (ex-Attimo, ex-Pomodori), sua ousadia e maturidade, sua ânsia de ir ao extremo e chocar, sem perder o aconchego caipira, a referência tão afetiva à estrela da mesa, o comer com as mãos, sem frescura, o lamber os beiços.

    São criações como o torresmo de pancetta, com um naco suculento de carne e superfície crocante, coberto com goiabada bem cremosa (R$ 24, quatro unidades). Esta, que surpresa, traz um agridoce sui generis, com toque de pimenta e alguma acidez.

    Cria-se ali uma atmosfera que convida o cliente a sair da zona de conforto, confortavelmente. É provocativo o tartare de lombo de porco maturado em câmara fria por dez dias, a ponto de apurar o sabor, enriquecido com untuosa manteiga de tutano (são gotículas, mas fazem presença) e pó de cogumelo (R$ 19, quatro canapés). Uma beleza.

    Na sequência, o sushi de papada (R$ 29, quatro). Tirinhas de gordura besuntadas com tucupi preto, denso e ácido, são acomodadas sobre bolinho de arroz (bem japonês, de sabor suave, meio adocicado) e submetidas rapidamente ao calor do maçarico.

    Também soa perturbador o ceviche de pé e rabo (R$ 17). Cubinhos translúcidos (e dá-lhe colágeno!) são embebidos em suco de limão, com pimenta, cebola e coentro, como manda o figurino.

    Depois de vir aos pedaços, ôh-abre-alas-que-eu-quero-passar, o porco San Zé (R$ 42), estrela da casa, é assado inteiro em churrasqueira de carvão feita sob medida e, à mesa, nos faz voltar aos sabores comezinhos. O prato traz várias partes do animal, úmidas, crocantes, douradas, e até pedaços mais secos, com menos gordura.

    Para acompanhar, banana em cubos (com pimenta-biquinho, cebola-roxa, azeite e suco de limão), tutu de feijão e couve crua. Esta, quando a casa abriu, era temperada com azeite e o conjunto da obra ficava demasiadamente gorduroso. Hoje, leva apenas limão e sal –a acidez, apesar de diminuir a intensidade da gordura, esconde o gosto da couve.

    Um recorte do menu se dedica às receitas autorais de Rueda (que o perseguem ao longo da estrada –caso do porco em cinco versões (R$ 66), no qual desfila, por exemplo, o antiquado medalhão envolvido em bacon, em referência bem-humorada aos anos 1980.

    Também há ousadia nas sobremesas da confeiteira Saiko Izawa, de delicadeza rara. Ela explora frescor e leveza ao combinar morangos, salsão e sorbet de manjericão (R$ 22).

    Que fique registrado o capricho no serviço de café: pode ser coado à mesa, em copo de cristal, bem diluído e suave, ou expresso. Para este, diferentes grãos são apresentados em uma caixa de madeira, como um serviço de chá. Costuma haver edições limitadas arrematadas em leilões –mas a extração ainda está devendo: o café queima a boca e, sem crema, perde o aroma num piscar.

    Da janela, compra-se a porcopoca (torresmo supercrocante, feito da pele do animal; R$ 10 a porção) e o sanduíche de porco com abacate, alface, tomate e maionese de mostarda com tucupi preto para o qual tiro o meu chapéu: custa R$ 15, é fácil de comer na calçada e viaja bem.

    Uma aura despretensiosa ronda aquela esquina, com jeitão de bar, filas de duas, três horas e cardápio democrático –nos preços e nas porções para dividir. Aliás, pinga ou champanhe? Ambos.

    A espera dia e noite pode ser um convite para observar o açougue, da rua, ou, como diz Janaina Rueda, mulher de Jefferson e também à frente do Dona Onça, no Copan, para descobrir (e ocupar) o centro.

    *

    Entrou em cartaz nesta terça (25), n'A Casa do Porco, um cardápio que comemora o aniversário de São Paulo e homenageia a imigração japonesa na cidade.

    Da parceria de Jefferson Rueda e da confeiteira Saiko Izawa saem criações como o porco frito com nabo ralado, o cozido de barriga, cebolinha e ovo cozido e o temaki de tartare de porco, com shisô.

    O menu, com oito etapas mais serviço de chá (R$ 160), começa especial: vai à mesa um sifão, no qual se faz café, e, nele, prepara-se um daishi, caldo-base da culinária japonesa. Peixe seco, alga e presunto cru fazem dessa receita um carinho na alma.

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