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    Decisões sobre suposto remédio não abordam regras de pesquisa clínica

    RICARDO MIOTO
    EDITOR-ADJUNTO DE "COTIDIANO"

    16/10/2015 02h02

    Mais de cem casos relacionados ao fornecimento de fosfoetanolamina, droga que supostamente trata vários tipos de câncer, chegaram ao Tribunal de Justiça de São Paulo desde novembro.

    A maior parte das decisões é favorável à distribuição obrigatória da substância pela USP –um professor de química do campus de São Carlos foi quem a desenvolveu.

    A Folha analisou os argumentos utilizados nos acórdãos. As decisões tratam muito pouco da ausência de testes controlados em humanos sobre a eficácia e a segurança da substância –o desenvolvimento de novas drogas envolve diversos estágios de pesquisa, as chamadas "fases".

    As decisões dos desembargadores se concentram especialmente no direito à saúde, na dignidade da pessoa humana ou outros princípios constitucionais abstratos.

    Apesar de a substância não ter sido incluída em nenhum protocolo de estudos clínicos, um desembargador escreve que ela "obteve excelentes resultados nas pesquisas".

    Em outra ação, em que o paciente é um aposentado de 89 anos, a desembargadora argumenta que "observa-se tendência atual de se autorizar a ministração de medicamentos a partir de relatos de melhora pelos pacientes".

    Ela faz uma comparação com a maconha: "Notícias recentes vêm demonstrando o uso de substâncias derivadas da Cannabis sativa para tratamento de crises de epilepsia. [Mas também] é sabido que a Cannabis sativa ainda não é registrada na Anvisa como droga para uso medicinal".

    A questão financeira também é levantada nos processos –ao dar liminares, a Justiça impõe um custo alto e descoordena as ações do Executivo, em tese responsável por gerenciar da maneira eficiente os recursos destinados ao SUS.

    Os desembargadores citam uma jurisprudência do STJ: "Defronte um direito fundamental, cai por terra qualquer outra justificativa de natureza técnica ou burocrática do Poder Público". Isso significaria que "não cabe argumentar com princípios concernentes ao orçamento" contra o direito à saúde.

    Um outro argumento recorrente é que o medicamento foi distribuído por muitos anos sem objeção da USP pela equipe do professor Gilberto Chierice, o que acabou criando uma expectativa de continuidade nos pacientes.

    O caminho de um medicamento

    A Folha não conseguiu entrar em contato com o cientista. A USP encaminhou uma nota afirmando que "a substância foi estudada de forma independente pelo professor Chierice, já aposentado. (...) Ela foi doada [aos pacientes] por ele, em ato oriundo de decisão pessoal".

    "A USP não assumiu a titularidade das pesquisas realizadas pelo professor e não tem qualquer controle a respeito disso. Cabe ao próprio professor informar quais são os meios adequados à obtenção do medicamento."

    A distribuição da substância ganhou força com uma decisão, no dia 6 de outubro, do ministro do STF Edson Fachin a seu favor.

    JURISPRUDÊNCIA

    As decisões em que a Justiça desobrigou a USP de fazer a entrega da substância citam a lei 8080/90: "É vedada, em todas as esferas do SUS, a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento sem registro na Anvisa" –é o caso da fosfoetanolamina.

    O problema é que há um outro dispositivo legal, o artigo 24 da lei 6.360/76, que pode ser interpretado de maneiras diferentes. Ele diz que "estão isentos de registro os medicamentos novos, destinados exclusivamente a uso experimental, sob controle médico".

    Alguns desembargadores e a USP acreditam que o que esse artigo quer dizer é que as instituições de pesquisa podem utilizar substâncias sem registro para testar em pacientes –se não fosse assim, o estudo de novas drogas seria impossível.

    Já os pacientes e os desembargadores favoráveis à entrega da fosfoetanolamina fazem uma interpretação mais abrangente, acreditando que tal normal suavizaria a proibição da lei 8.080/90.

    Ambas os pontos de vista contam com farta jurisprudência. Embora as decisões do TJ sejam em tese tomadas por três desembargadores, é raro que exista divergência quanto ao voto do relator, qualquer que seja ele.

    O Tribunal de Justiça afirmou que o seu presidente, Renato Nalini, não se pronunciaria sobre a questão, pois ainda há casos envolvendo a substância sob sua análise.

    JUDICIARIZAÇÃO CRITICADA

    Especialistas em medicina e direito questionam a judiciarização da saúde –ou seja, o uso da Justiça para garantir, no caso em questão, o fornecimento da fosfoetanolamina.

    "O juiz não é médico, então ele precisa de algum respaldo científico para tomar uma decisão dessa", afirma Sílvio Eduardo Valente, presidente da Comissão de Direito Médico da OAB-SP.

    "Mas a tendência do juiz, sabendo que o SUS e os planos de saúde funcionam mal, é dar provimento a esse tipo de ação."

    "Houve equívoco nesse caso, principalmente do STF. A judicialização da saúde já é polêmica para medicamento aprovados, pelo gasto que isso gera para o Estado, mas ainda é compreensível. Agora o que dizer sobre medicamentos experimentais? Abre um precedente ruim, espaço para aventureiros."

    O oncologista Gilberto Lopes Jr. tem opinião parecida. "Esse é um caso que está tomando proporções homéricas, mas do ponto de vista técnico é bem simples: não é uma substância testada. Os casos que a gente ouve e vê em reportagem não foram avaliados adequadamente do ponto de vista metodológico", afirma ele.

    "Obviamente pacientes estão no seu direito quando se sentem lesados, mas a judicialização acaba gerando distorções."

    "É um absurdo, os dados são muito preliminares", aponta o oncologista Fernando Maluf. " Não estudaram adequadamente a droga."

    -

    NOS AUTOS - O QUE DIZEM AS PARTES

    USP
    Não é remédio
    A substância nunca foi testada em humanos –nem pode ser chamada de medicamento

    Anvisa
    Até por isso, ela não tem registro na Anvisa, o que significa que não cabe ao governo fornecê-la aos pacientes do SUS

    Universidade
    A USP é uma universidade, não um centro de distribuição de medicamentos

    Nada com isso
    A iniciativa de distribuir a substância foi iniciativa de um único professor, não da universidade

    *

    PACIENTES
    Relatos pessoais
    Embora não existam estudos, tornando impossível isolar variáveis e efeito placebo, alguns pacientes relatam melhora nos seus quadros

    Constituição
    Há jurisprudência apontando que o direito à saúde se sobrepõe à avaliação de custo-benefício dos gastos públicos

    Anvisa
    Uma interpretação abrangente da legislação permitiria defender que drogas experimentais não precisam de registro

    Cautela
    Como vidas estão em jogo, o Judiciário deve primeiro conceder as liminares, deixando para depois a avaliação do mérito da substância

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