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    Neurocirurgião de 37 anos deixa biografia sobre câncer terminal

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    DE NOVA YORK

    19/05/2016 02h00

    Em maio de 2013, o neurocirurgião Paul Kalanithi enviou um e-mail ao melhor amigo: tinha um câncer terminal no pulmão. "A boa notícia é que já vivi mais que [Emily] Brontë, [John] Keats e Stephen Crane", disse, evocando ídolos literários. "A má notícia é que não escrevi nada."

    Ao morrer em março de 2015, aos 37, ele deixou a mulher, Lucy, a filha Cady, de dez meses, e um documento em seu computador, salvo como "Kalanithi-Ms-20Feb.docx". Lá estava seu primeiro e último livro, com direitos vendidos para mais de dez países antes de sua morte.

    Paul era o residente-chefe no hospital da Universidade Stanford, no fim de seu treinamento médico, quando recebeu o diagnóstico. "Como eu podia ser tão autoritário usando um jaleco de cirurgião e tão humilde numa camisola de paciente?", escreveu em "O Último Sopro de Vida" (When breath becomes air), recém-lançado no Brasil e líder na lista de
    mais vendidos feita pela Amazon americana e pelo jornal "New York Times".

    Muitos leitores acompanharam o avanço da doença junto com ele, que em janeiro de 2014 publicou no jornal nova-iorquino o artigo intitulado "Quanto tempo ainda tenho?".

    Não sabia à época, mas 14 meses. Pouco, para um jovem neurocirurgião tido como brilhante e um marido com uma vida pela frente. O bastante para o médico com mestrado em literatura inglesa realizar dois sonhos: ter
    um filho e escrever um livro, ainda que a duras penas.

    A certa altura, Paul usava luvas para manusear o laptop da cadeira de rodas -a quimioterapia rachara suas impressões digitais. Ao optar pela medicina, conta, buscava "o que dá sentido à vida humana, ainda que diante da morte e da decadência". E a neurociência, acreditava, lhe daria o mapa onde se cruzam biologia, literatura e filosofia, suas grandes paixões.

    CONTINUIDADE

    A viúva Lucy Kalanithi, ela também médica, intercala entrevistas sobre a obra que lançou após a morte de Paul e plantões de 12 horas num hospital em San Francisco. À Folha, por telefone, fala sobre o luto, "algo em geral solitário", mas tão público em seu caso.

    "Para muitas pessoas, é raro ouvir, um ano depois, o nome de alguém que perdeu. Comigo é o contrário. Todos que encontro querem falar sobre Paul. Achei que não, mas isso é ótimo. Catorze meses [desde a morte] parece muito tempo, exceto quando seu marido morre."

    Lucy e Paul se conheceram no primeiro ano da escola de medicina de Yale, há 13 anos. "Sabia que ele era bem inteligente, participava de uns grupos de bioética", lembra.

    Estudantes organizaram uma rifa filantrópica. Entre os prêmios, um encontro com Paul. Lucy foi sorteada e conheceu melhor o colega que ora posava de gorila nos portões do Palácio de Buckingham durante viagem a
    Londres ora criava uma fraternidade falsa, com eventos imaginários, na faculdade.

    "Quando fiquei sabendo que Virginia Woolf certa vez embarcou em um navio de guerra vestida como uma aristocrata abissínia, parei de me vangloriar dessas traquinagens triviais", narra Paul.

    Ao ler a obra póstuma, amigos próximos estranharam, conta Lucy. "Diziam, 'Bom, este livro não é muito engraçado'. E na vida real ele era superengraçado." A situação já é dramática por si só, mas dr. Kalanithi conseguiu contar passagens biográficas com leveza.

    Fala da experiência de abrir um cadáver (o corte da nuca à coluna é "como um zíper") e do formol que preserva o corpo, "um estimulante de apetite" que faz "você ter vontade de comer um burrito".

    Para Lucy, a escrita do marido contrasta com a aversão contemporânea à ideia da mortalidade. "Escondemos nossos corpos, e mesmo a palavra 'morte' ganha eufemismos, como 'fulano foi desta para a melhor'. Isso pode ajudar, mas também nos fazer menos sábios, menos dispostos a entender", diz.

    Talvez seja a mente racional da profissão, mas Lucy sabia que o marido jamais teria uma "cura milagrosa". "A taxa de sobrevivência era de 1% após cinco anos. Quando decidimos ter um bebê, eu sabia que seria mãe solteira", conta ela.

    Paul já estava doente quando foram a um banco de esperma para preservar seu sêmen congelado-temiam que seu tratamento afetasse a fertilidade. Ele descreve como Lucy chora quando a atendente pergunta o que fazer com o material "se um deles viesse a falecer". Não era uma questão de "se", mas "quando".

    "A palavra 'esperança' surgiu na língua inglesa cerca de mil anos atrás, denotando uma combinação de confiança e desejo. Mas o que eu desejava (viver) não era aquilo sobre o que eu estava confiante (morrer)", ele
    escreveu.

    Para o neurocirurgião, que aos 36 descobriu ter um câncer que afetava 0,0012% das pessoas com a sua idade, sua "relação com estatísticas mudou assim que me tornei uma delas". A filha Cady nasceu em julho passado, e Lucy colocou um de seus pares de meia no bolso da calça com a qual o marido foi enterrado.

    O Último Sopro De Vida
    Paul Kalanithi
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    Filho de um cristão e uma hindu, ambos indianos, Paul não gostava de "conceitos ultrapassados" como "alma" e "homens de barbas brancas". Nem por isso bania a espiritualidade de sua vida. Certa vez, a mulher perguntou: "Você acredita em Deus?". Respondeu que achava a questão tão importante quanto "você crê no amor?". E sua resposta sempre seria sim.

    O ÚLTIMO SOPRO DE VIDA
    AUTOR Paul Kalanithi (tradução Claudio Carina)
    EDITORA Sextante (176 págs.)
    PREÇO R$ 29,90

    Edição impressa

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