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    Cientistas acreditam que manipulação da flora intestinal possa curar doenças

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    26/06/2016 02h00

    E se beber água contendo uma bactéria típica da flora intestinal fosse capaz de curar os principais sintomas do autismo?

    À primeira vista, soa quase como curandeirismo, um jeito estapafúrdio de tentar enfrentar um problema neurológico altamente complexo, mas deu certo –ao menos em camundongos.

    Uma descrição detalhada dos experimentos, coordenados pelo pesquisador uruguaio Mauro Costa-Mattioli, do Baylor College of Medicine (EUA), acaba de sair na "Cell", uma das mais importantes revistas científicas do mundo.

    "Temos de ter muito cuidado, ainda há muitos estudos pela frente. A mensagem definitivamente não é que os pais de crianças com autismo deveriam sair por aí entupindo seus filhos de probióticos na esperança de que eles se curem. Mesmo assim, estou extremamente empolgado com as perspectivas", disse Costa-Mattioli à Folha.

    VOCÊ E SEUS MICRÓBIOS AMESTRADOS

    OBESIDADE E DIABETES

    Estudos como o do uruguaio, revelando correlações entre os micro-organismos que habitam nosso corpo e os aspectos mais insuspeitos da saúde humana, ganharam massa crítica nos últimos anos, conta a zoóloga britânica Alanna Collen em seu livro "10% Humano", que acaba de chegar ao Brasil.

    Para ela, manipular a microbiota –ou seja, a coleção de milhares de espécies microbianas que fizeram do organismo humano o seu lar– poderia ter impactos positivos na epidemia global de obesidade, em doenças autoimunes tão diferentes quanto a esclerose múltipla e o diabetes e numa lista de problemas mentais que, além do autismo, inclui a depressão e o transtorno bipolar.

    Aqui, é crucial frisar o verbo "poderia" porque, como enfatiza Costa-Mattioli, trata-se de uma área de pesquisa extremamente nova, com conhecimento novo sendo gerado o tempo todo num ritmo muito rápido (e, às vezes, contraditório).

    O ponto de partida está resumido no título do livro de Collen: só 10% das células no corpo de uma pessoa são realmente dela. Os outros 90% pertencem a bactérias e outros microrganismos que exploram diferentes partes do corpo (como a pele gordurosa do nariz ou as regiões quentes e úmidas da virilha).

    Nesse processo evolutivo de longo prazo, os micróbios não só aprenderam a se aproveitar das condições do organismo humano para se reproduzir como também aprenderam, em muitos casos, a oferecer diferentes vantagens a seus hospedeiros – é, afinal, um jogo de "ganha-ganha", no qual a saúde da pessoa permite que a comunidade microbiana fique mais próspera, e vice-versa.

    É por isso que uma flora intestinal vigorosa e diversificada é uma boa, como os médicos já sabem há bastante tempo. Os micróbios do intestino ajudam os seres humanos (e muitos outros animais) a digerir alimentos difíceis, produzem nutrientes que nosso organismo não é capaz de fabricar sozinho e competem com outros seres unicelulares que, se estivessem sozinhos, causariam doenças.

    Há indícios de que o tipo de microbiota pode influenciar diretamente a propensão a engordar. Alguns testes em animais de laboratório e pessoas sugerem que essa abordagem seria um caminho para enfrentar muitos casos de excesso de peso, que não teriam relação direta com o quanto a pessoa come e se exercita, mas sim com a variedade de espécies de bactéria em seu organismo.

    IMPACTO MENTAL

    BACTÉRIAS E AUTISMO

    As possíveis conexões da flora intestinal com ao menos parte do espectro do autismo começaram a ser exploradas porque é comum que as crianças com as diferentes formas do problema também sofram de problemas digestivos, tenham usado muitos antibióticos (que costumam matar as bactérias do organismo indiscriminadamente) e sejam filhos de mães com histórico de obesidade.

    Costa-Mattioli e seus colegas testaram a ideia ao comparar o comportamento de camundongos gerados por fêmeas que receberam uma dieta rica em gordura com os de filhotes que nasceram de mães com dieta normal

    Além de diferenças significativas em sua microbiota, os dois grupos tinham diferenças consideráveis de comportamento. Os camundongos do "grupo da gordura" tinham muito menos interesse em interações sociais e agiam de forma repetitiva -duas características clássicas do espectro do autismo
    em seres humanos.

    No entanto, os cientistas dores conseguiram contornar isso simplesmente colocando filhotes dos dois grupos na mesma gaiola. Ao comer o cocô dos colegas, ingerindo assim sua microbiota intestinal, os roedores do primeiro grupo passaram a ter uma vida social normal.

    O mesmo resultado foi observado quando os cientistas ofereceram a eles a água com Lactobacillus reuteri, micróbio comum no organismo dos bichos normais, mas quase ausente no dos roedores "autistas".

    "Uma das possibilidades é que as mudanças na ecologia do intestino estejam levando a alterações na produção de neurotransmissores [mensageiros químicos do sistema nervoso], levando a esse efeito", explica Costa-Mattioli.

    "A outra é que existe uma espécie de via expressa entre o cérebro e o sistema digestivo, que são ligados pelo nervo vago." Ele e seus colegas esperam publicar em breve um estudo elucidando esse mecanismo.

    Hipóteses como essa, se estiverem corretas, provavelmente levarão especialistas e médicos a repensar quando e como receitar antibióticos ou marcar cesarianas (esse tipo de parto priva o contato do bebê com a flora microbiana da vagina da mãe).

    Já há inclusive experimentos de "transplante microbiano" para bebês que nascem de cesariana –basta esfregar uma gaze na vagina materna e depois passá-la na boca e na pele da criança–, com resultados preliminares interessantes.

    10% HUMANO
    AUTORA Alanna Collen
    EDITORA sextante
    QUANTO R$ 39,90 (288 págs.)

    Edição impressa

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