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    Jornalista americana relata história de pai que, aos 76, virou Stéfanie

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    DE NOVA YORK

    03/07/2016 02h02

    Russ Rymer
    A jornalista nova-iorquina e ganhadora de um Pulitzer Susan Faludi com o pai, Stéfanie, em 2010, em Budapeste
    A jornalista ganhadora de um Pulitzer Susan Faludi com o pai, Stéfanie, em 2010, em Budapeste

    "Querida Susan, tenho novidades interessantes para você", começa o pai de Susan Faludi, num e-mail enviado em 7 de abril de 2004 e intitulado "Mudanças".

    "Decidi que já basta de incorporar o macho agressivo que nunca fui por dentro", continua, e para ilustrar anexa uma foto sob a legenda "pareço cansada depois da cirurgia".

    Está de camisa sem manga e saia vermelha, num hospital tailandês. Aos 76, o homem com quem Faludi, 57, mal falara nos últimos 25 anos diz que seu nome agora é Stéfanie.

    Vencedora de um Pulitzer, com obras feministas no currículo, a jornalista nova-iorquina confessa que num primeiro momento titubeou. "Posso administrar uma mudança no pronome, pensei, mas na paternidade?"

    Meses depois, Faludi foi à Hungria, onde Stéfanie morava, com um gravador, 24 fitas e dez páginas "sem duplo espaçamento" com perguntas.

    O pai transexual queria que ela escrevesse sua história, contada agora, 12 anos, no livro "In the Darkroom".

    Por onde começar?

    Ela cresceu vendo o pai como protótipo do macho americano. Steven lhe dava medo. Adolescente, percebia sua chegada em um cômodo mexer com a atmosfera, como "o termômetro que cai quando uma frente fria se avizinha".

    Faludi narra o dia em que Steven, após se divorciar de sua mãe, violou uma ordem de restrição e, com um taco de beisebol, atacou o novo namorado dela. A sala, diz, parecia uma cena de "Carrie – A Estranha", que estreara naquele outono de 1976.

    HOLOCAUSTO

    Stéfanie a recepciona com um suéter vermelho e brincos de pérola, o cabelo pintado de ruivo. "Seus seios 48C [uma das maiores medidas de sutiã] cutucaram nos meus."

    Em alguns momentos a feminista Faludi se sentiu desconfortável com a situação, como quando Stéfanie lhe mostrou o vídeo da operação de mudança de sexo.

    A filha logo pensou no programa de culinária da lendária Julia Child ("corte o peixe pela lateral, guarde a pele para depois"). "Ao menos Julia estaria armada com um drinque forte."

    Para a jornalista, Stéfanie desafiou não só visões tradicionais sobre masculino e feminino mas também conceitos mais contemporâneos sobre gênero.

    Seria limitado defini-la como uma mulher por décadas presa no corpo de um homem, percebeu.

    Para sobreviver ao Holocausto, o judeu István Friedman, filho da classe média alta de Budapeste, chegou a comer partes de um cavalo congelado no inverno.

    Depois da Segunda Guerra, mudou de assinatura (do judeu Friedman para Faludi, "um autêntico nome húngaro") e de país. Morou na Dinamarca e no Brasil.

    Comprou uma câmera de um ex-nazista e documentou uma hidrelétrica na Bahia, onde aprendeu um ditado em português: "O urubu pousou na minha sorte".

    Reinventou-se mais uma vez como pai de duas crianças no subúrbio do Estado de Nova York. Fazia questão que a família comemorasse Natal e Páscoa e era fanático por Leni Riefenstahl, a cineasta predileta de Hitler.

    Essa teia de identidades deu um nó na cabeça de Faludi. Qual delas é a mais verdadeira? O patriarca violento, ou talvez o aspirante a cineasta? O jovem judeu que simulou ser fascista para salvar os pais da câmera de gás, e que depois confessou a Faludi que "se você acredita ser quem finge ser, está a meio caminho da salvação"?

    E agora a filha se vê diante do pai, "este homem-judeu-transformado-em-mulher zombando de homens judeus por não serem masculinos o suficiente" –Stéfanie imitava a voz de Minnie Mouse para caçoar de conterrâneos que não enfrentavam as autoridades.

    "Se este livro tem uma ideia central", diz a autora à Folha, "é a de que a identidade é fluida e múltipla".

    Assumir essa posição significa também desafiar a ideia de que uma pessoa nasce com um gênero pré-determinado –como se Stéfanie fosse "pra valer", e István e Steven, de alguma forma, fossem urubus pousados nessa sorte feminina.

    É uma ideia polêmica: um dos argumentos de pastores que defendem a cura gay, por exemplo, é justamente o de que ninguém nasce homossexual (logo, teria escolha de deixar de o ser).

    "Não falo por toda a comunidade trans, e nem ela é uma entidade monolítica. Não estou caracterizando essa experiência. Estou escrevendo sobre uma pessoa."

    Faludi diz simpatizar "com uma nova geração de ativistas trans, que acreditam que o gênero existe como um contínuo e que as categorias devem ser rompidas, não reforçadas".

    E seu pai desafiou todas as convenções ao tornar sua, já na terceira idade, uma "feminilidade rosada" que a filha dispensou para si ("não ansiei pela maternidade, sou uma cozinheira indiferente, nunca costuro").

    Stéfanie morreu em 2015, aos 87. "Sinto falta do meu pai e a chamo pelo que nome que ela mais amou: Stéfi. Sinto falta dela."

    IN THE DARKROOM
    AUTORA Susan Faludi
    EDITORA Metropolitan Books
    PREÇO US$ 19,75 na Amazon

    Edição impressa

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