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    Laboratório de envelhecimento, cidade do RS se torna 'amiga do idoso'

    CLÁUDIA COLLUCCI
    DE SÃO PAULO

    08/08/2016 02h02

    Encravado nas serras gaúchas, Veranópolis será o primeiro o município do país a entrar no seleto clube mundial de 320 cidades tidas oficialmente como "amigas dos idosos" pela OMS (Organização Mundial da Saúde).

    Há 22 anos, o local se tornou um laboratório do envelhecimento. Na época, tinha a maior expectativa de vida ao nascer (77,7 anos), uma década a mais do que no resto do Brasil (que era 67,7 anos e agora chegou aos 75 anos).

    Desde então, os idosos da "terra da longevidade", como é conhecida, foram objetos de estudo de 25 dissertações de mestrado, 11 teses de doutorado, 19 artigos científicos e mais de 50 trabalhos apresentados em congressos nacionais e internacionais.

    Antes as pesquisas tinham foco na saúde individual e nos fatores determinantes para um envelhecimento ativo, como boa alimentação, atividade física e convívio social.

    "A comida dos nonos e nonas é muito saudável. A polenta é assada no fogão à lenha. O milho vem do quintal, o gado e o frango são criados soltos. Muitos fabricam o próprio vinho", relata o geriatra Emílio Moriguchi, precursor dos estudos em Veranópolis e professor na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e na Unisinos.

    Agora as pesquisas na cidade estão centradas nas políticas públicas necessárias aos idosos de hoje e do amanhã. A partir delas, algumas ações já foram feitas, como colocação de rampas e barras em lugares públicos.

    Segundo o médico Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade, parceiro no projeto, é preciso rigor acadêmico, comprometimento do poder público, da sociedade civil e do setor privado para que as políticas funcionem.

    "Conseguimos casar esses quatro elementos em Veranópolis", diz Kalache, que foi diretor por 14 anos do programa de envelhecimento da OMS. O projeto teve incentivo de R$ 510 mil da CPFL.

    Para o médico, várias cidades no país e no mundo se intitulam "amigas do idoso", mas não cumprem os requisitos para isso. "Colocar rampa e corrimão é fácil. Mas é preciso ir além. Ter política de mobilidade, oferecer segurança, acesso aos serviços de saúde e ações para evitar o abuso e a negligência."

    Pesquisa com 836 idosos da cidade mostra que entre as principais queixas estão calçadas escorregadias, falta de estacionamento e de espaços planos para caminhadas. Dos 23 mil moradores, quase 16% têm acima de 60 anos. No Brasil, a taxa é de 12,5%.

    O município está entre os de maior IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano) do país. A longevidade é o fator que mais contribui, seguido de renda e educação.

    LONGEVIDADE

    Veranópolis reúne casais com 60 e até 70 anos de união. O advogado Severino De Toni, 87, e a professora Nilza, 87, estão casados há 64 anos. Têm nove filhos.

    O segredo da longevidade? "Levar uma vida sem exageros, não ficar parado e, principalmente, amar muito. O amor na frente, sem ele implode tudo", diz De Toni, de mãos dadas à mulher.

    Nilza lembra da importância do convívio social. "Temos muita amizade e consideração com a vizinhança."

    O casal Ampílio Affonso, 90, e Landy, 80, há quase 60 anos juntos, apontam a boa alimentação como a chave de uma vida longeva. "Evitamos as porcarias que têm no mercado. O gado, o porco e a galinha a gente cria, a verdura, os legumes, as frutas, a gente planta", diz Affonso.

    Ele produz e consome o próprio vinho. "Um copo no almoço e outro na janta."

    Avelino Sangalli, 91, e Helena, 88, comemoraram "bodas de vinho" (70 anos de casados) em maio. Têm sete filhos, 15 netos e sete bisnetos. Mesmo com limitações (ele é cego e ela tem surdez), são independentes. Sangalli racha lenha e faz cestos de vime. Vende cada um por R$ 25.

    Helena cuida da casa, da horta, do jardim e, em especial, do marido. "Até comida na boca ela me dá", conta ele. "É assim mesmo. No começo [da vida] e no fim", diz ela.

    RESTAURANTE

    O antigo conselho de "ouvir os mais velhos" foi levado ao pé da letra pelo empresário Juliano Brandalise, 31, ao assumir um restaurante quase falido oito anos atrás em Veranópolis (RS).

    O local não poderia ser melhor, mas a comida do empreendimento –que tem quase 80 metros de altura, é giratório e com vista de 360 graus para a Serra do Rio das Antas– não possuía identidade com o lugar.

    A primeira providência de Brandalise, nascido em Veranópolis, foi chamar um grupo de 60 idosas da cidade e discutir com elas a elaboração de um novo cardápio para o restaurante.

    "As nonas nos trouxeram as receitas dos primeiros imigrantes italianos e poloneses, que colonizaram Veranópolis entre o final do século 19 e início do 20", explica. Entre elas estão a massa à bolonhesa, o espaguete à carbonara e o radicci (almeirão) com bacon.

    "Tem gente que fala: 'em São Paulo a massa carbonara não é assim'. Explicamos: 'a nossa é assim porque tem uma história, é uma receita típica e legítima do local."

    As idosas também ajudaram na decoração do restaurante, com fotos e objetos familiares antigos, além de toalhas de cores vivas. "Não existe toalha branca aqui." A nova proposta agradou a freguesia e hoje o local é o mais visitado da cidade.

    Para o Alexandre Kalache, especialista em envelhecimento, a experiência mostra a importância de a sociedade valorizar os mais velhos.

    "A sociedade deveria replicar o que o restaurante fez na prática: buscar a voz do idoso, valorizar a sua sabedoria. Quem se beneficiou? O restaurante, que atraiu mais clientes, o município que arrecadou mais impostos. É uma corrente do bem."

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