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    mosquito aedes aegypti

    ENTREVISTA

    Danos da zika estão longe de ser totalmente compreendidos

    MARCELO NINIO
    DE WASHINGTON

    24/11/2016 02h00

    Jay Mallin/Folhapress
    Vanessa van der Linden Mota recebe, em Washington, o prêmio Liderança para as Américas
    Vanessa van der Linden Mota recebe, em Washington, o prêmio Liderança para as Américas

    Em agosto de 2015, a neuropediatra Vanessa van der Linden Mota percebeu que havia algo estranho na maternidade Barão de Lucena, em Recife, onde trabalha. Em poucas semanas, o número de bebês com quadro de microcefalia teve um aumento significativo.

    Com a ajuda de outros médicos e pesquisadores, incluindo sua mãe e irmão, também neuropediatras, ela juntou o "quebra-cabeças" e foi uma das primeiras pessoas a soar o alarme de que os casos estavam ligados à zika, um vírus que até então gerava pouca preocupação.

    Pouco mais de um ano depois, há muitos avanços na pesquisa, mas a médica diz que os casos graves são apenas "a ponta do iceberg", e que ainda há muitas perguntas sem resposta. Um exemplo são bebês diagnosticados recentemente, que nasceram normais e só meses depois mostraram alteração no cérebro.

    Ela falou com a Folha em Washington, onde recebeu o prêmio Liderança para as Américas, do centro de estudos Diálogo Interamericano.

    *

    Folha - Um ano depois do chamado "bebê zero" da zika, quais são os principais avanços e dúvidas sobre o vírus?

    Vanessa van der Linden Mota - Hoje entendemos melhor como o vírus age, que além da transmissão pelo mosquito isso também ocorre pelo sêmen. Um dos problemas sérios é que tivemos ao mesmo tempo casos de dengue, zika e chikungunya. Era uma doença nova e relacionávamos o que víamos com as doenças já conhecidas. O exame de imagem desses pacientes mostra que o comprometimento é muito mais na área cortical, onde estão os neurônios.

    Há um padrão de má-formação, alguns mais graves, outros menos. Como se o vírus interferisse na migração das células para o córtex cerebral. Além disso, os pacientes de zika também tem artrogripose, deformação nos membros. Isso não é comum em infecção congênita.

    Numa pesquisa que fizemos em Recife vimos que o vírus atinge também o neurônio na medula. Com a lesão na medula o bebê fica sem se movimentar direito dentro da barriga e nasce com deformidades. Não acontece em todos os pacientes, apenas 7% dos casos. Ainda não sabemos porque acontece com alguns e outros não. Outra coisa que aparece muito nessas crianças é epilepsia numa incidência muito maior do que estamos acostumados.

    Em que proporção dos bebês a epilepsia aparece?
    Em 60% dos casos. Outro efeito que identificamos recentemente é hidrocefalia [acúmulo de líquido que leva ao inchaço do crânio] depois de uma certa idade. É uma porcentagem pequena, ainda estamos investigando para saber se motivada pelo vírus.

    Mais de dois terços dos pacientes são muito graves. Uma minoria tem uma interação boa, algum grau de desenvolvimento psicomotor, mas temos um grande número de pacientes que estão com um ano de idade e não interagem com o olhar, não sustentam o pescoço, não sentam, tem hipertonia [rigidez muscular], convulsionam. Ou seja, não cumpriram nenhuma etapa de desenvolvimento.

    Recentemente eu atendi quatro crianças que nasceram com perímetro encefálico normal e depois de cinco meses começaram a apresentar atraso. Quando fizemos a tomografia vimos que o quadro tinha as mesmas características dos casos graves, só que menos intensas. Além de ter um atraso de desenvolvimento, a cabeça parou de crescer normalmente –foram notificados com microcefalia tardia.

    O que isso significa?
    Que os pacientes mais graves são só a ponta do iceberg. O que a gente diagnosticou de síndrome congênita de zika são esses pacientes graves, em que é fácil fazer o diagnóstico no começo. Mas a gente não tem noção de quantos pacientes foram afetados de forma mais leve. Só veremos mais para frente. O que não sabemos é se há casos leves que podem não ter microcefalia, mas terão atraso de desenvolvimento, alteração motora ou cognitiva.

    Por que alguns casos são mais graves que outros?
    Alguns postulam que infecções prévias pela dengue facilitam uma carga viral maior, porque daria uma imunidade parcial. É como se o vírus enganasse e conseguisse entrar na placenta com mais facilidade. Não sabemos ainda se o fator nutricional interfere, ou outra infecção, como sífilis. Tanto fatores ambientais como genéticos podem estar ligados a isso. Acho que tem a ver com o processo de imunidade da mãe e, portanto, o do bebê.

    E por que 90% dos casos de microcefalia notificados no mundo são no Nordeste?
    Acho que tem a ver com os fatores ambientais, inclusive a coinfecção dos outros arbovírus, mas é tudo especulação. O clima é importante. Começou no Nordeste, mas migrou para outras áreas, como Mato Grosso e Goiás. Em outros países com concentração de casos, o clima é muito semelhante.

    Com a chegada do verão, há expectativa de um novo surto?
    Há controvérsias. Eu acredito que pelo menos temporariamente nós temos imunidade. O vírus chegou a uma população sem imunidade nenhuma e se disseminou com uma facilidade muito grande. A zika se espalhou no Nordeste e muitos adultos tiveram, por isso houve esse boom de microcefalia.

    Este ano tivemos uma redução imensa, é só um caso ou outro. Tivemos muito mais chikungunya e dengue. Se realmente a imunidade for permanente, eu acredito que iremos passar da fase de epidemia para endemia, ou seja, grávidas que nunca pegaram zika vão acabar tendo.

    E quanto à chikungunya?
    Para adultos, ela é muito mais grave que a zika. Tem paciente que fica um ano com dores articulares, edemas e podem chegar à incapacidade, enquanto que a zika, às vezes em 24 horas, vai embora e, em muitos casos, pode ser assintomática.

    Nós sabemos hoje que tanto chikungunya quanto zika podem resultar quadros neurológicos no adulto e na criança, como encefalite e [a síndrome paralisante de] Guillain-Barré. Há alguns poucos casos em que mães que tiveram chikungunya no fim da gestação contaminaram o bebê, provavelmente na hora do parto.

    Como dar esperança a famílias de pacientes com microcefalia?
    Mesmo com pacientes que tiveram hipoxia [falta de oxigênio] grave no nascimento, quando a mãe pergunta como vai ser o futuro, eu digo que é preciso esperar, porque você pode se surpreender.
    Em cada consulta, vemos alteração. As mães perguntam "ele vai andar"? Mas antes de andar ele precisa prestar atenção, olhar. Para andar ele precisa querer andar. Precisa primeiro sustentar o pescoço, ninguém anda sem antes sustentar o pescoço.

    Se a gente disser para a mãe de uma criança de um mês que ela provavelmente não terá essa ou outra função, há o risco de a mãe ficar com raiva, perder todas as esperanças e parar de investir na criança.

    Na zika isso não é mais grave?
    Ao contrário. Porque como ninguém sabe ainda muito, pode ser que melhore. Tem pacientes que surpreendem. A mãe é o meio para a criança melhorar. A reabilitação não vai criar um potencial, mas pode desenvolver o que existe.

    Quando a criança chega a um ano, sabemos melhor. Mas mesmo as que não têm funções podem ser felizes. Depende muito de como cada mãe encara isso. Um avanço pequeno para um bebê é enorme para aquela mãe.

    A situação do bebê pode ser grave do ponto de vista funcional, mas, se conseguimos tratar a hipertonia e a epilepsia, ele pode sorrir, dormir, acordar, se alimentar direito, interagir de alguma maneira. Sem cuidados, a tendência é piorar. Não ganha peso, luxa o quadril, tem dor, chora e engasga facilmente. É uma bola de neve. Há crianças graves que não têm nem contato visual, mas que a mãe começa a cantar e elas sorriem.

    A OMS (Organização Mundial de Saúde) declarou o fim da emergência global pelo vírus da zika. O que achou?
    Não trabalho com saúde pública e não sei os critérios usados para definir emergência internacional, mas, pelo que entendi, a OMS vai continuar o trabalho. O que posso repetir é que precisamos de um tempo maior para definir melhor os riscos.

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    RAIO-X

    IDADE
    47 anos

    NASCIMENTO
    Paris (França); veio ainda bebê para o Brasil

    FORMAÇÃO
    Médica pela UFPE; pediatra pelo IMIP (PE) e neuropediatra e mestre pela USP

    TRAJETÓRIA
    Atua na AACD e no Hospital Barão de Lucena, em Pernambuco

    Edição impressa
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