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    Chocolate em pó ganha narizes estrangeiros, mas não dá barato

    LETÍCIA NAÍSA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    17/12/2017 02h00

    Francois Lenoir/Reuters
    O chocolatier belga Dominique Persoone, que lançou a moda de cheirar chocolate
    O chocolatier belga Dominique Persoone, que lançou a moda de cheirar chocolate

    Em 2007, o chocolatier belga Dominique Persoone criou uma sobremesa inusitada para uma festa dos Rolling Stones: chocolate em pó para ser cheirado como se fosse cocaína. A inspiração veio do hábito de seu avô de cheirar rapé. Ele criou também o "chocolate shooter", uma espécie de catapulta para ajudar na tarefa.

    "Eles adoraram", disse Persoone à Folha. "No dia seguinte saiu uma notícia contando que eles haviam cheirado chocolate, por isso virou um sucesso." Desde então a prática tem ganhado adeptos especialmente na Europa e, recentemente, também nos EUA.

    Tanto que houve até a tentativa por parte de uma marca de chocolate em pó de ocupar esse "nicho de mercado".

    A agência reguladora de drogas e alimentos dos Estados Unidos, FDA, notificou a empresa responsável pelo chocolate em pó Coco Loko, que foi feito par ser cheirado e que vem sendo anunciado como possível "substituto" para cocaína e outras drogas.

    A agência critica ainda a inclusão de taurina e guaraná na composição do Choco Loko, que não são feitos para serem consumidos por via nasal. A promessa da marca é gerar uma explosão de energia e euforia no usuário.

    CACAU X COCAÍNA

    Segundo Persoone, a ideia era apenas fazer uma piada, mas, recentemente, o chocolate em pó tem marcado presença em festas no hemisfério norte. Por aqui, há poucos relatos de pessoas que aderiram à moda.

    O Brasil é o segundo maior consumidor de cocaína do mundo, lembra Renato Filev, pesquisador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid). Por isso, a moda de cheirar cacau poderia pegar.

    "O chocolate só está sendo inalado porque a cocaína é proibida ou não chega. Os indivíduos recorram a outras substâncias que têm à mão."

    A psiquiatra e professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Ana Cecília Marques trata dependentes em cafeína e explica que a causa da busca por estimulantes é multifatorial.

    Para ela, o uso do cacau em pó aponta surgimento de uma nova onda no consumo de drogas marcada pelo contexto econômico e pela busca de novas sensações.

    "Nós vimos isso acontecer com todas as drogas na história da humanidade. Acho que vai ter uma onda de consumo, algumas pessoas terão problemas, outras não, e, quando a onda diminuir, vão se manter usuários aqueles que desenvolverem tolerância e dependência", diz.

    O uso recreativo do chocolate, no entanto, data da época dos maias e astecas, diz Alexandre Varella, professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e pesquisador no Labed-USP.

    As elites dessas civilizações ameríndias faziam uso do cacau em pó em bebidas que acreditavam ser mágicas. Segundo o professor, existem relatos de que a bebida de chocolate tinha efeito embriagante e dava energia aos guerreiros.

    Na Europa, ela era apreciada em "coffee shops" como uma bebida exótica nos séculos 17.

    Para Varella, existe uma expectativa cultural e um contexto em torno do ato de cheirar chocolate. "Ao usar como se fosse cocaína, você cria expectativa de ter o mesmo efeito, então isso gera o efeito de fato", diz.

    Além do ambiente propício, outro fator pode influenciar o uso e os efeitos de estimulantes: a pressão social. "Os contatos iniciais com a droga têm relação com as interações sociais", diz.

    "A pressão social estimula o cérebro, se seus pares estão usando alguma coisa –lícita ou ilícita– e nos sentimos melhores quando há reconhecimento social", explica Luiz Scocca, psiquiatra membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e Associação Americana de Psiquiatria (APA).

    Por isso, muitas vezes, o efeito da droga pode ser placebo, diz o especialista.

    "Quando a pessoa inala, a ativação é intensa e o cérebro esta de certa forma programado para buscar mais daquela sensação", explica Fabio Porto, neurologista do Hospital das Clínicas de São Paulo.

    As doses presentes em uma carreira de pó de cacau, no entanto, não são suficientes para gerar embriaguez.

    "Essa classe dos estimulantes tem um impacto e estimula o cérebro, mas cheirar chocolate não vai fazer ninguém ficar muito louco", diz Marques. "Fazer uso de múltiplas substâncias é que faz a diferença."

    Filev opina que a moda do chocolate em pó é apenas uma forma de burlar o sistema. "Você adquire o mesmo efeito, o barato, com uma substância lícita. Como a dose é baixa, não deve haver tanto efeito colateral."

    Para Persoone, que produz chocolates cheiráveis nos sabores gengibre com hortelã e framboesa, essa é uma boa notícia. "Eu não sou traficante", diz. "Não sou o novo Pablo Escobar do chocolate", brinca.

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