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    Há cem anos, gripe espanhola matou mais de 50 milhões e deixou enigmas

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    08/01/2018 02h02

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    Soldados no forte Rieley, no Estado do Kansas (EUA), onde recebiam tratamento para a gripe espanhola, em 1918
    Soldados no forte Rieley, no Kansas (EUA), onde recebiam tratamento para a gripe espanhola, em 1918

    O ano era 1918, mas a cena relatada nas páginas do jornal anarquista paulistano "O Combate" poderia ter acontecido nos momentos mais sombrios da Idade Média: uma bebê de oito meses, filha de imigrantes japoneses, tentando sugar o seio da mãe morta, isolada em casa junto com o marido (também morto) pela pandemia de gripe espanhola.

    De fato, o estrago causado por essa forma do vírus influenza nos momentos finais da Primeira Guerra só fica atrás da mortandade trazida pela Peste Negra medieval. Dependendo das estimativas, entre 50 milhões e 100 milhões de seres humanos perderam suas vidas ao longo de alguns meses (até 5% da população mundial na época).

    Os diferentes tipos de vírus da gripe sempre foram capazes de matar, mas um dos elementos-chave por trás do horror da gripe espanhola é que ela parece ter sido mais grave quando infectava adultos jovens e saudáveis, enquanto outras formas da doença tendem a produzir mortes de bebês, idosos e pessoas com sistema imune mais debilitado.

    Há boas razões para acreditar que parte dessa violência contra jovens saudáveis tem relação com a chamada tempestade de citocinas, uma reação descontrolada do sistema imune à presença do invasor. "Com isso, você tem uma reação inflamatória muito forte, em especial no tecido respiratório, com formação de edemas, que está muito ligada a esse risco de mortalidade", explica Rosana Richtmann, do Instituto de Infectologia Emilio Ribas.

    Fragilizados pelo vírus, os pulmões dos doentes também podiam sucumbir a infecções bacterianas, e há ainda relatos da época que falam em hemorragias no nariz, nos ouvidos e no sistema digestivo.

    Richtmann aponta que o avanço devastador do vírus (um tipo de influenza A H1N1, tal como o da gripe de 2009) foi facilitado pela falta quase total de imunidade natural das populações do planeta e pelo confinamento de jovens em quartéis e campos de batalha durante a Primeira Guerra. "Uma população aglomerada e sem anticorpos era um campo fértil para a doença".

    ANÁLISE DE DADOS

    É preciso algum cuidado com as estimativas sobre o impacto da pandemia porque, como lembra Alexandre Chiavegatto Filho, da Faculdade de Saúde Pública da USP, em 1918 nenhum país tinha informações nacionais confiáveis sobre causas de mortalidade (o sistema brasileiro foi criado nos anos 1970).

    "São Paulo era uma das grandes cidades que coletavam dados sobre óbitos na época", conta ele. Na capital paulista, o padrão de mortes de adultos jovens se confirma, talvez agravado pela forte presença de imigrantes de baixa renda, muitos deles vivendo em moradias precárias, sem condições de saneamento e pouco espaço (o que, claro, facilitava a transmissão).

    Estima-se que nada menos que um terço da população paulistana (530 mil habitantes na época) tenha ficado doente, o que resultou em cerca de 5.000 mortos –proporcionalmente, Nova York, que tinha 5,6 milhões de habitantes e chegou a uma contagem oficial de 30 mil vítimas, foi afetada de modo menos severo.

    O vírus matou 2,5% dos infectados em São Paulo em 1918 (uma forma normal da gripe não vitima mais que 0,1% dos infectados). Homens parecem ter sido um pouco mais afetados do que mulheres. No caso de São Paulo, diz o pesquisador da USP, há indícios de que um estudante vindo do Rio foi o chamado "paciente zero", o primeiro a trazer a doença para a cidade.

    Por outro lado, é muito mais difícil determinar o "paciente zero" em escala mundial, embora alguns casos numa instalação militar do Estado americano do Kansas costumem ser citados em livros sobre a pandemia. A análise do material genético do vírus de 1918 sugere que ele descende de patógenos que afetavam aves e pode ter pulado diretamente desses animais para o ser humano, sem a passagem por hospedeiros de outra espécie de mamífero, como os porcos.

    Embora tais vírus aviários frequentemente sejam gestados em países do Extremo Oriente, como a China, onde os métodos de criação de aves colocam galinhas e patos em contato com espécies migratórias, não há indícios diretos de que isso aconteceu pouco antes da pandemia de 1918 –é possível que ancestrais imediatos do vírus tenham circulado entre as numerosas tropas mobilizadas por toda a Europa desde 1914, quando a guerra começou.

    Seja como for, a relativa facilidade de transporte de milhões de soldados por longas distâncias deve ter facilitado o espalhamento da doença.

    Por si só, a pandemia foi suficiente para reduzir em 12 anos a expectativa de vida nos EUA. Apesar dos avanços tecnológicos, faz todo o sentido a vigilância permanente para detectar o surgimento de vírus similares, diz Rosana.

    "Não é à toa que a gente costuma dizer que o vírus é uma caixinha de surpresas. Ele parece sofrer mutações maiores a cada sete ou dez anos, e nada impede que a gente tenha de novo uma pandemia causada por vírus aviários ou suínos no futuro."

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    Peste Negra
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    Peste Negra
    Gravuras mostram cenários da peste negra na Europa, epidemia mais severa do que a de gripe espanhola.

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