Pela primeira vez no Brasil, um paciente conseguiu uma liminar para usar e importar medicamento derivado da Cannabis sativa, nome científico da maconha.
A decisão proferida nesta quinta-feira, 3, pela Justiça permite que Anny de Bortoli Fischer, 5, que sofre de uma forma rara e grave de epilepsia, possa usar o canabidiol (CBD), um dos 80 princípios ativos da erva e que não causa efeitos psicotrópicos.
Segundo o juiz Bruno Apolinário, da 3ª Vara Federal de Brasília, a autorização foi concedida por causa dos benefícios que o medicamento, importado ilegalmente pela família, trouxe à criança.
Apolinário, porém, diz que a decisão é exclusiva para esse caso. "Não se pretende com a presente demanda fazer apologia do uso terapêutico da Cannabis sativa (...) menos ainda da liberação de seu uso para qualquer fim em nosso país (...) A substância revelou-se eficaz na atenuação ou bloqueio das convulsões, (...) dando-lhe uma qualidade de vida jamais experimentada", diz trecho da decisão.
Anny tem a doença desde os 45 dias de vida e tinha de 30 a 80 crises convulsivas por semana, segundo laudo anexo à decisão, emitido pela USP de Ribeirão Preto. Ela recebeu, sem sucesso, tratamento com anticonvulsivos e implante no cérebro para minimizar as convulsões.
A família, então, importou o medicamento ilegalmente dos EUA, pela internet e por intermédio de amigos que viajaram para os EUA. A mãe de Anny, Katiele Fischer, 33, aprendeu como usar o produto no Facebook, com um pai americano que passou a escrever sobre sua experiência com a filha. "Conversei com ele e fomos fazendo tudo o que ele fazia", diz.
Sérgio Lima/Folhapress | ||
A paisagista Katiele Fischer, 33, e a filha, Anny Fischer, 5, em sua residência em Brasília |
O CBD chega ao Brasil na forma de uma pasta, que é dissolvida no óleo uma vez por dia. Na última importação, a substância foi retida pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
A família, então, decidiu obter na Justiça liminar para importar e retirar o medicamento retido. Mãe e filha também participaram do documentário "Ilegal", que estreou na semana passada.
Dirigido pelo jornalista Tarso Araújo, o curta do vídeo encabeça campanha para um site informativo sobre a maconha medicinal.
"Acompanhei à Anny e sei da evolução da doença e dos benefícios do CBD", diz José Alexandre Crippa, psiquiatra da USP de Ribeirão Preto que já estudou os benefícios do canabidiol para uma série de enfermidades, incluindo ansiedade, transtornos do sono, Parkinson e epilepsia.
Nos EUA, o CBD tem status legal. A FDA (órgão que regula remédios no país) considera o composto seguro, mas quem o vende não pode alegar propriedades medicinais, já que o CBD ainda não passou por testes clínicos no país.
O composto é comercializado na forma de óleo pela empresa HempMedsPX. A companhia vende o composto como um "suplemento" para ingestão via oral, pomada cutânea e até xampu.
A Anvisa diz que a família poderia ter entrado com um pedido formal para obter a substância. A agência informa que a lei prevê que remédios sem registro ou ilegais possam ser importados para uso científico ou medicinal.
O juiz diz ainda na decisão que a Anvisa deve prosseguir com as investigações para confirmar a eficácia e segurança do medicamento, mas não há como a paciente esperar até a conclusão desses estudos sem que isso lhe traga prejuízos.
O Conselho Federal de Medicina, em nota, informou que o médico tem autonomia para prescrever ou não qualquer medicamento, mas que a importação desses medicamentos precisa ser autorizada pela Anvisa.
A Associação Brasileira de Psiquiatria é contrária ao uso da maconha medicinal até que sejam comprovados seus efeitos benéficos. Procurada pela Folha, a Academia Brasileira de Neurologia não quis se pronunciar.