Faz cinco anos que a carioca Viviane Mann Rechtman, 55, vive com um terceiro rim, doado por seu marido, Felipe, 56. Com o transplante, as sessões diárias de diálise acabaram, a qualidade de vida melhorou e a vida seguiu.
A história deles seria igual a milhares de outras não fosse por algo que normalmente impediria esse final feliz: os dois eram incompatíveis.
Após algumas transfusões de sangue e três gestações, Viviane desenvolveu muitos anticorpos anti-HLA em resposta imune a essas células estrangeiras. HLA é, grosso modo, o sistema do corpo que classifica células como "próprias" ou "impróprias".
Os anticorpos anti-HLA de Viviane então atacariam e destruiriam um rim estranho -incluindo o de seu marido, como os exames apontaram.
Mas um procedimento relativamente novo, chamado dessensibilização, consegue filtrar o sangue, retirar os anticorpos "rebeldes" e permitir que o transplante seja feito mesmo nesses casos.
"A diálise me fazia muito mal, e eu tinha que fazer toda noite. Era dependente daquela máquina", conta ela, que passou pelos procedimentos -dessensibilização e depois transplante- no hospital Albert Einstein, em São Paulo. "Agora, tenho um novo rim que vale por três."
O relato de Viviane é corroborado por um novo estudo, publicado na prestigiosa revista médica "New England Journal of Medicine", que aponta que receber um rim de doador vivo e incompatível traz benefícios. É, inclusive, melhor do que ficar na fila à espera de um transplante de falecido compatível.
RIM NOVO - Órgão de uma pessoa 'incompatível' pode ser usado
Os pesquisadores comparam um grupo de pessoas que passaram pela dessensibilização e receberam um rim de doador vivo HLA-incompatível com outros dois grupos: pessoas que ficaram na fila de espera e receberam um rim de doador morto; e pessoas que também ficaram na fila, mas não receberam o órgão.
A sobrevida do primeiro grupo em comparação com o segundo foi 13,6% maior depois de oito anos. Em relação ao terceiro grupo, a sobrevida foi 36,6% maior.
VALE A PENA?
A ideia do estudo, segundo os autores, era avaliar se havia benefício em termos de sobrevida para compensar passar por todo o processo.
"Eles mostram que se você pega esse paciente, faz a dessensibilização, que é um procedimento muito pesado, e transplanta o rim, ele vai melhor do que quem fica aguardando", diz Alvaro Pacheco e Silva Filho, coordenador do programa de transplante renal do Einstein.
Se não fossem retirados, os anticorpos destruiriam rápido o rim transplantado, diz ele. "A dessensibilização muda totalmente a história."
PERFIL
No Einstein, cerca de 20 pacientes já passaram por esses procedimentos. Estima-se que entre 10% e 20% dos pacientes que precisam de um rim se encaixariam no programa por terem anticorpos contra a maioria da população, ou contra o único doador possível.
Mas, se o paciente não tem um doador vivo à mão, não faz sentido passar pela dessensibilização, já que o procedimento tem que ser seguido imediatamente pelo transplante e pode ser feito mesmo depois da operação, para que os anticorpos "rebeldes" não voltem a ser produzidos.
Silva Filho lembra ainda que a técnica de retirada dos anticorpos aumenta o risco de infecção e requer equipe especializada. Também custa caro -acima de R$ 50 mil.
Por todos esse motivos, é improvável pensar no procedimento como algo que possa reduzir significativamente a lista de espera por transplante renal, segundo os especialistas ouvidos.
Valter Duro Garcia, coordenador de transplantes da Santa Casa, afirma, porém, que os procedimentos para transplante incompatível poderiam ser introduzidos no SUS para casos de urgência, desde que de maneira organizada e considerando os custos e riscos.